Sanctuary (2022)

de João Iria

“It’s not about the rules, and it’s not what about arouses you. The reason that I don’t touch my clients and that they don’t touch me is that what they need from me is not physical. It’s mental.”

“Sanctuary” é a safe word numa sessão lasciva entre uma dominatrix, Rebecca (Margaret Qualley), e o seu cliente, Hal (Christopher Abbott), o futuro CEO de uma empresa de cadeia de hotéis, atraídos como traças para um cintilante jogo de sedução carnal e poder emocional, cuja descarga eléctrica física apodera-se da sua relação além desta transação sexual, das suas identidades e dos seus respectivos futuros. Hospedados num dos seus luxuosos quartos principais, os dois protagonistas iniciam a sua derradeira partida SM, ultrapassando os limites estabelecidos e culminando numa fantasia orgásmica que derrama a sua semente nas suas realidades individuais. A presença desta palavra, nesta longa-metragem, ocorre ironicamente. Um santuário é habitualmente considerado um espaço sagrado embutido com protecção divina ou encarado como um asilo da violência de uma vida exterior. É o suposto céu na terra, um mundo que proporciona uma segurança apaziguadora, impossível de adquirir na nossa sociedade. Para esta dupla o seu cenário libertino é um cobiçado paraíso privado, um refúgio, enquanto o conceito de um santuário, a sua safe word, funciona como um retorno às suas desgraçadas existências num mundo conservador, limpo e solitário.

Para o espectador comum, Sanctuary será uma longa-metragem sexy, divertida e envolvente, capaz de evocar um sorriso na sua conclusão e uma experiência satisfatória. Para mim, Sanctuary é uma das películas mais subvalorizadas dos últimos anos. Zachary Wigon, o realizador, compõe esta comédia negra, aprisionada num thriller psicológico claustrofóbico situado maioritariamente num quarto de hotel, como uma encantadora love story masoquista designada para os amantes do cinema horny. Como a sua dominatrix, Wigon evita nudez, preservando as suas específicas regras na formação da natureza erótica desta narrativa: é um jogo de sedução mental. O seu domínio devasso manifesta-se nas suas palavras. O argumentista, Micah Bloomberg, demonstra o seu impacto com diálogos fascinantes que exploram as suas dinâmicas de controlo, o seu combate pela posse de poder e a liberdade emocional e física que uma fantasia sexual consegue proporcionar a ambas as personagens; na fantasia desvendam a realidade que negam aos seus próprios corpos.

“I need to match up my insides with my outsides.” afirma Hal para Rebecca, numa fútil tentativa de encerrar os seus negócios. A sua futura posição impede-lhe de ceder às suas tentações e de saciar os seus íntimos apetites por degradação e humilhação, entregando um relógio dispendioso para a sua “actriz” como uma recompensa final pelo seu trabalho. Rebecca responde com um novo “argumento” improvisado pela raiva e pelo desprezo sentido no seu despedimento, completamente desviado dos guiões que este CEO escrevia para as suas sessões prazerosas. Rebecca provoca Hal com mentiras, verdades e frases concebidas para oferecer-lhe os seus desejos interiores agregados aos seus medos principais.

Chantagem assalta o segundo acto desta história, pronunciada com uma transição de luzes desfocadas similares a um colorido teste rorschach, onde os rostos destas figuras são moldados conforme a passagem das suas emoções e da sua ligação sentimental. Capítulos são divididos pela luz. Simultaneamente, o framing procura seduzir a audiência, estimulando esta com uma aptidão técnica extraordinária que derrete os espectadores através de imagens maravilhosas. Sanctuary manuseia a sua iluminação com uma visão artística absolutamente espectacular – a direção de fotografia de Ludovica Isidori é das melhores que presenciei dentro do cinema contemporâneo. Os diversos candeeiros estabelecem inicialmente um ambiente típico de um encontro romântico nocturno até evoluírem para holofotes, brilhando nos olhos dos protagonistas como numa peça de teatro. Voyeurístico, íntimo e combativo, a iluminação transforma-se conforme as divisões ocupadas por esta dupla, reflectindo o estado actual da sua batalha, incluindo uma casa de banho celestial.

Os restantes elementos audiovisuais aderem entusiasticamente ao jogo destas personagens, brincando com a componente de fantasia na sua relação, espelhada na banda sonora de Ariel Marx com toques arrepiantes e melodias comoventes; com as suas profusas metamorfoses, retratadas no guarda-roupa – uma única peça é suficiente para Mirren Gordon-Crozier criar diferentes personalidades neste duo que veste e despe-se das suas ansiedades e vontades; e na sua visão teatral capturada nos cenários inventivos dominados por padrões e cores esculpidos para regalar diversas perspectivas consoante a iluminação e o ângulo do plano, atravessando constantemente os protagonistas e contando a sua própria história no background. Quem está realmente no poder? Em controlo? É tudo resumido a uma perspectiva. A edição de Kate Brokaw e Lance Edmands desfruta deste prisma, colocando a sua dupla em conversas e posições cruzadas que desobedecem a regras cinemáticas precisamente para marcar um conflicto entre reflexos.

Aparências são ilusões e o cineasta, Zachary Wigon, apoia-se neste campo para a escolha dos seus actores. Margaret Qualley a representar uma dommy mommy possivelmente convoca uma ilustração fisicamente absurda para os espectadores familiares com a sua presença. Contudo, a sua inevitável fragilidade corporal e emocional participa neste espectáculo com uma finalidade essencial na construção da sua Rebecca e da sua viagem dramática. São pessoas a interpretar personagens dentro de personagens com camadas atrás de camadas, vertidas nos seus passos. Qualley assinala uma performance fantástica, enfeitando o seu olhar com esta consciência performativa, encaixando nas suas máscaras e personas com o deleite de uma actriz a libertar-se na sua personagem. Christopher Abbott, um dos actores mais subvalorizados actualmente, interpreta um homem em negação da sua identidade, à procura de encarnar a pessoa que é suposto ser, que o seu pai abusadamente tatuou na sua mente. Teoricamente, Hal está constituído com componentes detestáveis, frustrantes e patéticas mas o actor é simplesmente demasiado charmoso e naturalmente divertido para o seu nepo CEO milionário motivar esta raiva na audiência. Mesmo quando Hal abarca num caminho violento, Christopher Abbott encontra uma vulnerabilidade enternecedora na perversão da sua personagem, cativando o público com a sua incrível actuação. Nunca meramente um vilão; é uma vítima do seu mundo frio.

Sanctuary é uma sensual peça de teatro masoquista acerca de performance, sobre as personagens que interpretamos nas nossas vidas e como a fantasia permite desvendar uma realidade desconhecida ou propositadamente ignorada. Sobre o poder da transformação e as peças societárias e familiares que conjugam os nossos corpos e evocam a necessidade de desempenhar inúmeros papéis dentro do nosso universo. A realidade infiltrada na ficção e a ficção invadindo a realidade. Moldados por um mundo que impede-nos de encontrar a pessoa que realmente ansiamos ser ou simplesmente a pessoa já existente, enfraquecida pela escuridão de um esconderijo. O seu carinhoso e engraçado, todavia estranho, happy ending brinca com o conceito de fantasia dentro da sétima arte e a procura por controlo dos nossos sonhos. Recordando que o próprio acto de criar ou experienciar cinema é uma forma de descoberta individual. Uma fantasia audiovisual.

4.5/5
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