Tensão, tensão, tensão. É esta a palavra que define Rodéo, assim mesmo, elevada ao cubo. Nunca há um único segundo onde não exista a sensação de estarmos sobre uma tremenda angústia. Julia (Julie Ledru) procura, como todos nós, fazer parte de algo. Não o encontra na família, não o encontra no seu bairro ou mesmo nos estranhos que se cruzam no seu dia-a-dia. As suas próprias raízes caribenhas (sempre omnipresentes) revelam um pouco de quem é, mas é a constante apreensão e, acima de tudo, a raiva, que guiam as suas acções. Acaba por encontrar esse sentimento de pertença na estrada, qual Jack Kerouac, nos manípulos de uma mota, enquanto o vento “embala” os seus cabelos encaracolados.
Julia acaba por partilhar essa paixão com um grupo de motociclistas de acrobacias, que conhece por acaso numa concentração ilegal, os B-More. Mas os B-More são bem mais que isso, e das acrobacias à introdução no mundo do crime organizado é um passo. A adrenalina, a camaradagem mas também o perigo, a inveja e o preconceito, num mundo dominado pelos homens, testam Julia ao limite e despoletam a sua evolução rápida na organização.
Julia é uma incógnita todo o filme. Nunca sabemos quem realmente é. As pistas vão surgindo amiúde, mas nunca contando a história completa. Da sua família apenas o irmão nos é dado a conhecer, numa relação intempestiva e desprovida de amor ou sequer de compreensão. Cada um por si, parece ser o lema. A parte mais visível do seu passado são as ligações à cultura caribenha com amplas referências à possessão de corpos e manipulação da mente. Os próprios rituais espirituais aliados à cultura surgem, e dão à história um toque desconfortável ao mostrar apenas o mínimo essencial para desenvolver a personagem e nos fazer acreditar. Há indicações da sua sexualidade mas é algo que o argumento mantém propositadamente em aberto, como um elemento de fluidez e de abertura sexual independente dos cânones impostos pela sociedade.
Existem outras referências ao passado de Julia que ficam nas entrelinhas, mas criam uma personagem forte e complementam a intensidade de Julie Ledru, só possível quando o argumento e actriz estão em sintonia, e neste caso assenta que nem uma luva. Este tipo de personagens, maiores que o mundo, tendem a obliterar a concorrência, e em comparação, todos os restantes actores sofrem com esse “furacão” que é a actriz principal. A possível excepção será Antonia Buresi (coautora do argumento com Lola Quivoron), uma mãe com a paciência no limite devido a um homem que a controla mesmo dentro das paredes de uma prisão. Esse homem é Domino (Sébastien Schroeder), o suposto líder do grupo, e tal como um marionetista, controla todos à distância por fios invisíveis. Surge em telefonemas e sente-se o seu poder por sugestão nas caras e nos efeitos provocados na vida de todos, mas nunca o sentimos na sua voz ou nos vislumbres das videochamadas.
Possivelmente fruto de condicionantes relativas à produção e orçamento disponível, as acrobacias das motas nas estradas careciam um pouco de mais atenção, para deixar o espectador mais impressionado com as manobras reproduzidas. Relativamente à abordagem da fotografia, é bastante naturalista optando por aproveitar a luz disponível e tem soluções interessantes quando filma em baixa luz, com o uso de luz reflectida no fumo dotando-a de um outro poder e criando um sentimento espiritual forte. Essa espiritualidade está presente noutros momentos, nomeadamente na utilização do fogo como metáfora para a “purificação” de Julia, como uma fénix que renasce das chamas a cada viagem de mota.
No final, até o espectador fica a saber distinguir os vários modelos como se fosse um membro dos B-More, tal a imersão que o argumento consegue alcançar. Ainda hoje ouço o som inconfundível de cada Honda CRF que aparece em Rodéo.
Lola Quivoron guia-nos pela estrada da vida de Julia sem rodeios, mostrando a vida como ela é, sem filtros ou condescendência. Nem sempre a compreendemos ou concordamos com as suas acções, mas Julie Ledru, com um carisma desmedido, faz-nos acreditar na sua personagem e com ela partilhamos o seu sonho, que também acaba por ser o nosso: ser aceite por aquilo que somos. Que entrada fulgurante de ambas na estrada que é este mundo do cinema. Vemo-nos na próxima paragem.