Rifkin’s Festival (2021)

de Pedro Ginja

A distribuição de espectadores da sala foi o primeiro sinal. Claramente longe dos grandes grupos presentes em Shang-Chi. De putos a comer pipocas, excitados com o regresso às aulas, passamos para casais de reformados a falar da vizinha do 3º esquerdo ou para cinéfilos de “óculos escuros”, para não serem identificados a ver um filme de Allen. Todos separados por um fosso. Seria este fosso cavado pelas normas da DGS? Algo diferente se passava. Prenúncio de uma tragédia pessoal ou de tempos difíceis?

O filme segue Mort Rifkin (Wallace Shawn – O alter-ego mais realista de Allen?), um crítico de cinema de Nova Iorque, que acompanha a mulher (Gina Gershon), ao festival de cinema de San Sebastian, em Espanha. O ciúme toma conta de Mort pois existe um clima de romance entre ela e Phillipe (famoso realizador francês), interpretado por Louis Garrel. Um quadrado amoroso forma-se quando Mort conhece a Drª Jo Rojas (Elena Anaya). Na cabeça de Mort, sempre as grandes questões para as quais não tem resposta. A única solução possível é responder com os clássicos do cinema, em “viagem” pelos filmes da vida de Allen. Godard, Truffaut, Bergman, Wells são alguns exemplos do que nos espera.

Por culpa do exibidor, a cópia que vi tinha uma distorção nas cores, o que retirou naturalidade à bonita fotografia do filme. Mas esta distorção tornou os pequenos filmes, dentro do filme, a preto e branco ainda mais especiais. Das distorções do mundo real, da “falsidade” do dia-a-dia a cores somos transportados para uma homenagem ao cinema de autor. Cinema com C grande. E neste mundo imaginário de Allen as “distorções” não existem. Os grandes clássicos mantêm a sua aura intocável, mesmo de distorções indesejadas. O trabalho de fotografia excecional de Vittorio Storaro, transporta-nos para o interior desses grandes filmes. E se o exibidor tivesse deixado, também o teria feito nos momentos a cores. Na dita vida real. San Sebastian surge lindíssima, um verdadeiro postal de férias. As agências de viagem espanholas agradecem esta publicidade.

Estes interlúdios roubam descaradamente aos seus mestres mas mantêm-se firmes com a alma de Allen. Visualmente não são Allen mas os diálogos são paródias dele mesmo. Com o humor irónico, depreciativo da sua persona e sem pudor de mostrar a sua própria vulnerabilidade. Teoricamente é Mort o alvo mas, como em qualquer filme de Allen, é ele próprio que se auto-retrata. Uma das suas imagens de marca – de saber rir das suas falhas como ser humano. Algo que nos falta, por vezes e uma das razões porque admiro alguns dos seus filmes. Woody Allen vive um momento difícil na vida real: envolto em escândalos e cada vez mais só nos apoios vindos da indústria cinematográfica. Não sou juiz nem carrasco por isso avalio a arte independentemente da sua vida pessoal.

Posso ser eu a imaginar, mas algumas cenas pareceram forçadas. Como anúncios a determinadas empresas ou a um tal de festival de San Sebastian. Nada contra, mas retira liberdade do que a arte pretende mostrar. No elenco senti os mesmos problemas. Noutros tempos teríamos outro calibre de estrelas por aqui. O papel de Elena Anaya seria para Penelope Cruz ou o de Gina Gershon para uma Kate Winslet. Louis Garrel, no entanto, está a divertir-se ao máximo no grande ecrã. Como o arquétipo do homem perfeito, o galã francês e perfeito arqui-inimigo de Mort. Judeu intelectual, inseguro e desconfortável com a sua masculinidade. Os insultos que trocam dissimuladamente ao longo do filme são um dos pontos fortes do mesmo. Nem Philippe está livre do ridículo numa cena que envolve bongos e que originou a gargalhada mais sonora dos últimos tempos. Pelo menos na minha “zona” do cinema. E bem perto do final, um dos melhores cameos dos últimos tempos. Christopher Waltz numa homenagem a Bergman. E mais não digo. Wallace Shawn é a alma do filme, o mais verdadeiro alter-ego de Allen e o que melhor expressa a sua incapacidade de sentir. Tão visível nos diálogos entre Mort e a Drª Jo. É muito desconfortável a sua incapacidade de ler as emoções de quem o rodeia. Mort disfarça com humor, como é apanágio de Allen. A “ferida” dissimulada é a dor mais sentida.

No final Mort pergunta ao espectador o que pensa ele do que acabou de ouvir/ver. A resposta fica no silêncio. Não é inocente este momento. A resposta foi sendo dada durante o filme em cada um dos seus momentos. Mas Allen coloca-se à mercê dos seus críticos no seu filme mais pessoal dos últimos tempos. Muitos vão ver apenas uma comédia. Eu vejo uma tragédia disfarçada com humor. Mort é um homem derrotado. Incapaz de criar a obra-prima perfeita arrasta-se pela vida lembrando os seus momentos de glória passados como professor de cinema. Quando a vida era simples e feliz. Os paralelos com a vida de Allen são assustadores. E tornam este filme demasiado real. 

O Riso do desconforto. Missão cumprida Srº Allen.

Ps: Vivemos num estranho novo mundo. E o medo do cinema ainda está presente. As salas continuam muito vazias. Por isso ver este filme a 3 euros foi um bom sinal da parte dos distribuidores. Mas é preciso fazer um pouco mais. É TEMPO DE VOLTAR ÀS SALAS DE CINEMA. FAZ A TUA PARTE.

3.5/5
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