Retratos Fantasmas (2023)

de Bruno Sant'Anna

O cinema e a memória interseccionam-se em muitos aspectos. Por exemplo, ambos são formas que o ser humano encontrou de dobrar a realidade, conscientemente ou não. Quando um realizador opta por deixar um detalhe fora de um filme ou evidenciar outro, é uma decisão criativa para construir uma narrativa através do seu ponto de vista. Paralelamente, muitas das nossas recordações sofrem o mesmo tratamento com o passar do tempo. Há momentos tão felizes que precisam de ser revisitados para encararmos o que o futuro nos espera, e outros menos bons que precisam de ser amenizados para que possamos seguir em frente. Entre a sétima arte e a lembrança existe a alteração e os fantasmas, mas também a resistência.

“Parece que estou falando de metodologia, mas eu estou falando de amor”. Uso esta frase do realizador brasileiro Kleber Mendonça Filho para contextualizar esta primeira reflexão e também introduzir o seu filme Retratos Fantasmas. Exibida pela primeira vez durante a seção Special Screening da 76ª edição do Festival de Cinema de Cannes, esta obra é um documentário cujo período de produção, pesquisa e montagem durou sete anos e esse tempo transparece em cada segundo da película. Existe um imenso cuidado, sensibilidade e carinho em cada registro exibido, cada imagem de arquivo curada e cada momento da vida particular do cineasta exposta. São cartas de amor para a sua família, amigos, a cidade de Recife e para o cinema.

Retratos Fantasmas está dividido em três atos. O primeiro é o mais íntimo de todos, reunindo vídeos caseiros da família de Kleber Mendonça Filho misturados com a  documentação dos bastidores das suas três longas-metragens anteriores – O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019). Durante este segmento, não só o público se familiariza com a história do realizador como notamos que muitos detalhes sobre os seus trabalhos passados são baseados em eventos que realmente aconteceram na sua vida. É uma forma engenhosa de nos aproximar de Kleber e ressignificar as suas obras, para quem já as conhece.

A segunda parte é a mais longa e com o trabalho de pesquisa mais intenso. Kleber narra a história do centro de Recife e dos cinemas locais da cidade através de imagens documentadas pelo próprio realizador ao longo dos anos e outras de arquivos fornecidos por fontes como a Cinemateca Brasileira, o Centro Técnico Audiovisual e a Fundação Joaquim Nabuco. A maioria das salas de cinema de rua foram fechadas devido à desvalorização da cultura no país e a região central é cada vez mais esquecida pelo governo e pelas novas gerações.

O terceiro e último segmento revela como os cinemas de rua em Recife foram substituídos por garagens, shopping centers e, na sua maioria, igrejas evangélicas. No caso destas últimas, muitas vezes toda a estrutura de palco, cadeiras e ecrã foram intocadas durante a construção destes templos religiosos. Esta parte reflete as mudanças sociais e económicas que ocorrem no Brasil desde a década de 80, em que o património histórico brasileiro é substituído por símbolos capitalistas e a cultura trocada pela busca da prosperidade.

Sem nenhum contra-argumento, Kleber Mendonça Filho é um dos maiores cineastas da história do Brasil. O realizador possui uma ampla carga de conhecimento sobre o cinema, desde a erudição até o popular, e transporta isso para as histórias dos seus filmes. O seu domínio sobre o assunto consegue quebrar paradigmas de narrativa cinematográfica, e surpreender sempre nas suas brincadeiras com o ritmo, género e com a escala de tensão que constrói nas suas obras. Em Retratos Fantasmas, consegue misturar a estética documental com ficção, suspense, fantasia e intercalar com cenas plasticamente estonteantes, tornando esta longa-metragem numa experiência reflexiva e hipnotizante.

Há uma forte carga sentimental e pessoal no filme. O próprio título invoca a ideia de que, quando documentamos um lugar ou uma pessoa, as mesmas ganham uma aura eterna. Elas podem transcender o tempo e serem reproduzidas ou vivenciadas mesmo depois do fim da sua existência. O que Kleber Mendonça Filho faz nesta obra é reviver a memória das pessoas que ele ama e que já perdeu assim como os lugares que ele considerava santuários (os cinemas do centro de Recife), permitindo que as suas essências continuem sendo ressignificadas, numa espécie de resistência da memória.

Assistir a um filme de Kleber Mendonça Filho é desejar que a experiência nunca acabe, e esta sensação não é diferente com Retratos Fantasmas. Afundar nas memórias do cineasta e na sua celebração do cinema dentro da cultura brasileira é vertiginoso. Uma obra para ver e rever diversas vezes para contemplar todo o trabalho e amor que foi colocado nesta.

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