No visionamento recente de Restos do Vento, Paulo Branco (produtor) falava da facilidade que tinha sido arranjar o financiamento para este filme após o êxito da Herdade (2019), o anterior projecto de Tiago Guedes, em Portugal e na França, e ainda fruto da estreia de Glória (2021), a primeira série portuguesa da Netflix. Uma anomalia relativamente ao cinema português, onde o financiamento continua a ser uma miragem para tantos criadores desta área. Restos do Vento estreou no último festival de Cannes, numa secção fora de competição mas que cimenta, ainda mais, a carreira deste jovem realizador português, que já em mãos o seu próximo projecto, baseado na obra de Cesare Pavese – Dialogui con Léco, já filmado e em pleno processo de pós-produção.
Filmado no concelho de Penamacor, em pleno interior português, Restos do Vento acompanha as tradições populares de folclore de uma aldeia que deixa eventos traumáticos num grupo de jovens adolescentes. Vinte e cinco anos volvidos, voltam a encontrar-se nas festas da aldeia e os medos, preconceitos e conflitos voltam à superfície. A tragédia é inevitável.
O interior português tem sido criminalmente subaproveitado no uso das lendas, histórias e crenças populares que apenas lá habitam. Restos do Vento aproveita desde logo esse manancial com a introdução de um clone dos, mais que famosos, Caretos de Podence – Património Cultural Imaterial da Humanidade. Os jovens adolescentes desta aldeia (nunca identificada) vestem fantasias onde o anonimato é a chave para um dia em que tudo é permitido sem possível recriminação. Sente-se a pressão da aldeia, neste ritual de passagem para a idade adulta, para transporem limites com o risco de serem ostracizados caso não cumpram a tradição. É este dia fatídico que determina a sorte e o futuro deste miúdos, mas não a sua felicidade e é também o prólogo perfeito para a criação de uma tensão latente durante todo o filme. Exemplo perfeito de qualquer aldeia portuguesa do interior em que todos se conhecem mas onde os olhares de julgamento e sentença estão sempre à espreita. A transição temporal de 25 anos, depois desse dia fatídico, é brusca e sem aviso e cria uma extra dose de tensão do desconhecido mas também familiaridade e facilidade na identificação de cada um daqueles miúdos.
Em destaque, 25 anos depois, está Albano Jerónimo, o leading man por excelência, que interpreta Laureano longe dos clichês do louco da aldeia, este com um bom coração e uma moralidade inquestionável mas também com as fragilidades de alguém derrotado pela vida e excluído por todos. Nuno Lopes, como Samuel, habita o outro lado do espectro com uma vida estável, respeitado na aldeia mas com a moralidade e a sanidade sempre na corda bamba. O choque entre estas duas personagens é “cozinhado muito lentamente” mas é inevitável e é essa constante incerteza de quando acontece o melhor do filme. Intrometidas no meio surgem ainda a personagem de Salomé (Leonor Vasconcelos) e sua mãe Judite (Isabel Abreu) com alguns momentos relevantes para brilhar na resolução da trama e no cumprir da tradição típica das aldeias do interior, de uma protecção comunitária de moralidade dúbia. Todos os restantes actores cumprem o que o argumento manda sem grande espaço de manobra para criação de uma personagem.
No campo visual tem alguns apontamentos interessantes, principalmente em interiores ou no meio das ruas da aldeia e, também, no uso de luzes alternativas como janelas abertas, velas ou lanternas. O pior é mesmo em grandes espaços abertos ou em certas cenas à noite em que tudo parece pouco claro e sem uma direcção bem definida no ênfase que quer dar à narrativa. O argumento é bem delineado no build up de tensão criado e a resolução satisfatória, mas o final adivinha-se com muita antecedência o que retira gravitas quando finalmente surge.
A aposta recente do cinema português no rico património cultural de lendas e tradições do interior profundo de Portugal é bastante acertada e este Restos do Vento é mais uma prova dada na afirmação da Portugalidade como terreno fértil para argumentos interessantes e com algo a dizer. Ancorado em algumas interpretações fortes e num inteligente build up de tensão, acaba por desiludir apenas num final fácil de adivinhar e nas fragilidades da fotografia em exteriores. Que o vento traga mais boas notícias destas ao cinema português.
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