Rescaldo FEST 2024: Mudança de direção e cortes no orçamento não impedem uma 20ª Edição Memorável

de Francisca Tinoco

Na última semana, por todos os cantos do Centro Multimeios de Espinho, ouviu-se elogiar o sentimento de comunidade e camaradagem do FEST – nome completo FEST – Festival Novos Realizadores | Novo Cinema – que celebrou o seu vigésimo aniversário em Espinho na última semana de junho, com nova direção e menos fundos públicos.

Algumas das frases mais frequentemente ecoadas entre as paredes paradoxalmente imponentes e acolhedoras do principal espaço cultural da cidade marítima foram “é dos meus festivais favoritos para conhecer pessoas,” “venho sempre que posso,” “adoro o ambiente,” e “é especial.” Disse-o Melissa Leo, atriz vencedora do Óscar em 2011 e convidada de honra recorrente do festival, e Edgar Morais, ator e realizador português que já trouxe filmes e exposições até Espinho e que este ano fez parte do júri do principal prémio, o Lince de Ouro. Mas também o disseram participantes e voluntários dos vários cantos do mundo e membros da equipa organizadora que todos os anos contribuem para o crescimento do festival.

O FEST consegue trazer até Espinho grandes nomes do mundo do cinema sem nunca perder o ar familiar e pequeno (no melhor sentido da palavra) que o define. Tem vindo, nas duas últimas décadas, a construir um lugar singular no panorama cultural português, tanto enquanto alternativa aos polos habituais de Lisboa e do Porto, como enquanto fusão entre festival de cinema e training ground. Este ano contou com mais de 250 filmes em exibição, e para cima de 30 masterclasses, workshops, e mesas redondas, para além de 12 concertos dentro da iniciativa Music Walk With Me e 25 candidatos no Pitching Forum (secção do festival em que pitches de filmes selecionados são apresentados a convidados especiais e demais participantes). Em honra dos 20 anos do FEST, a retrospectiva Be Kind Rewind este ano foi composta quase na sua maioria por filmes que passaram por esse mesmo Pitching Forum e que deram os seus primeiros passos no Multimeios de Espinho, incluindo Farha (2021) sobre o Nakba de 1948, que foi alvo de tentativas de boicote por parte de Israel aquando da sua estreia na Netflix.

O motor do FEST continua a ser o futuro mesmo quando a ocasião justifica alguma nostalgia.

Fernando Vasquez, que sucede a Filipe Pereira na direção do FEST ao lado da codiretora Ana Catarina Ferreira, admitiu que “as expectativas são sempre altas,” fruto duma tentativa constante de fazer o festival crescer em dimensão e prestígio. Ainda assim, a intenção de utilizar o marco dos 20 anos para refletir sobre o percurso do FEST até aqui não foi totalmente realizada. “A minha expectativa era que íamos passar mais tempo a refletir sobre o passado, e na realidade, nem por isso. O foco continua 100 porcento no futuro,” Vasquez confessou em conversa com o Fio Condutor, rematando, “Estamos a pensar mais nos próximos 20 anos do que nos 20 anos passados.” Afinal, esta orientação para o futuro está no próprio nome do festival, que procura dar voz a cineastas e talentos emergentes ao mesmo tempo que oferece sessões incrivelmente elucidativas com veteranos da indústria.

Para além de Melissa Leo, que protagonizou uma masterclass sem complexos e inibições, vieram também até Espinho os realizadores Kenneth Lonergan e Nadine Labaki, o editor Yorgos Lamprinos, o cenógrafo Andrew McAlpine, e o artista de maquilhagem e efeitos especiais Mark Coulier, entre muitos outros, espalhados por palestras abertas a todos os participantes e oficinas mais exclusivas com cerca de 30 vagas.

As sessões de cinema foram divididas nas tradicionais categorias competitivas do Lince de Ouro para Ficção e Documentário (longas-metragens internacionais), Lince de Prata para Ficção, Documentário, Animação e Experimental (curtas internacionais), Grande Prémio Nacional (curtas portuguesas), NEXXT (filmes académicos internacionais) e FESTinha (Sub10, Sub12 e Sub16, cujo júri é sempre composto por crianças da respetiva faixa etária). Durante as múltiplas sessões, nomeadamente da secção dedicada ao panorama nacional, tornaram-se evidentes o talento e potencial que o futuro da sétima arte nos reserva. Visitar o FEST é também renovar esse otimismo face a uma indústria que cada vez mais se vê ameaçada pelo poder do dinheiro e da tecnologia desmedida.

Os desafios que ameaçam mais 20 anos de FEST.

Não é preciso procurar muito para encontrar exemplos das dificuldades que o setor do cinema e da cultura enfrentam. Na cerimónia de abertura, Vasquez revelou que a preparação desta edição comemorativa foi especialmente desafiante graças à transição na direção pela primeira vez em vinte anos, mas também devido a cortes no financiamento por parte do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) e à inflação. Para o codiretor do FEST a redução do financiamento foi “uma surpresa total.” Vasquez não se conforma com uma mudança que diz não se justificar.

“A nossa impressão é que éramos dos poucos festivais em ascensão. Não nos parece que o ecossistema dos festivais tenha mudado de tal maneira que justificasse uma redistribuição dos fundos. Ainda para mais, redistribuição dos fundos para os festivais no Porto e em Lisboa.” Para além de contribuir para a descentralização da cultura em Portugal, Vasquez aponta ainda para a juventude da sua equipa e para a presença de uma mulher, Ana Catarina Ferreira, na direção do festival de cinema, algo que diz ser “quase inexistente no contexto nacional.” A vigésima edição do FEST contou com a equipa mais pequena dos últimos dez anos, mas conseguiu mesmo assim manter o dinamismo e vivacidade do passado. “Um esforço absolutamente excêntrico,” afirmou o portuense, que iniciou a sua carreira no FEST como programador em 2010.

Para sobreviver, é importante a capacidade de adaptação do festival ao panorama volátil do audiovisual, começando pela relação dos públicos com as salas de cinema e o tipo de conteúdo que os mesmos preferem consumir. As séries televisivas são, assim, uma das apostas, tendo o FEST planos para competições a esse nível no futuro. Ainda assim, o cinema de autor e a experiência coletiva continuam a ser uma prioridade para Vasquez e para o festival. Quanto à permanência do evento na cidade de Espinho, o codiretor declara “Isso é outra questão. Vamos ver.”

A mudança e a evolução são fulcrais, claro, mas a fama do FEST enquanto campo intensivo de networking à beira-mar precede-lhe e caracteriza grande parte do seu charme. No final do festival, aqueles que a Espinho acorreram durante uma semana, já se conheciam uns aos outros, trocavam acenos de cabeça ou conversas entusiásticas, e crivam até colaborações profissionais que poderão um dia definir a sua vida. A dimensão reduzida do evento não é um entrave, mas sim uma mais-valia, principalmente porque o FEST e a sua equipa não deixam que o tamanho impeça o festival de ser notavelmente completo, surpreendente e relevante.

Palmarés do FEST 2024:

  • LINCE OURO – FICÇÃO: The Adamant Girl – Vinothraj PS (IND)
  • LINCE PRATA – FICÇÃO: It Turns Blue – Shadi Karamroudi (IRN)
  • LINCE OURO – DOCUMENTÁRIO: Echo of You – Zara Zerny (DNK)
  • LINCE PRATA – DOCUMENTÁRIO: City of Poets – Sara Rajaei (NLD)
  • PRÉMIO PÚBLICO – Longa-metragem: Echo of You – Zara Zerny (DNK)
  • PRÉMIO PÚBLICO – Curta-metragem: The Distance Between Us – Léo Fontaine (FRA)
  • GRANDE PRÉMIO NACIONAL: Seu nome era Gisberta – Sergio Galvão Roxo
  • LINCE PRATA – EXPERIMENTAL: The Eyeball Person – Yuri Muraoka (JAP)
  • LINCE PRATA – ANIMAÇÃO: Tako Tsubo – Fanny Sorgo, Eva Pedroza (DEU)
  • NEXXT: The Voice of Others – Fatima Kaci (FRA)
  • FESTinha – Sub10: Writing Home –  Eva Matejovičová (CZE)
  • FESTinha – Sub12: Canary – Pierre-Hugues Dallaire (CAN)
  • FESTinha – Sub16: El Ombligo de la Luna – Sara Lourenço António, Julia Grupińska, Bokang Koatja, Ezequiel Garibay Cires, Tian Westraad (FRA)

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