A ideia de “expectativa” é interessante. Quer dizer que, por constante repetição do mesmo par de causa-efeito, a cablagem do nosso cérebro reajusta-se de tal forma a que o nosso corpo reaja quando as mesmas circunstâncias que contemplam a causa estão em ordem. O que acontece quando perante estas circunstâncias das quais o nosso cérebro espera um efeito, este não se materializa? Esta questão não é científica, nem a explicação que a antecedeu. É totalmente cinematográfica.
Questão essa que Jeremy Saulnier levanta na sua segunda colaboração com a Netflix, em Rebel Ridge. A primeira imagem no ecrã é a de Terry (Aaron Pierre), a pedalar em direção à vila onde o seu primo foi detido pela polícia, acusado de tráfico de droga, com 30.000$ na mochila para pagar a fiança. De auscultadores na cabeça, não se apercebe que está a ser mandado parar pela polícia e é abalroado, revistado e algemado e vê o seu dinheiro, do qual consegue explicar a origem perfeitamente legal, apreendido por suspeitas de estar relacionado com estupefacientes. Terry entra então numa batalha, legal e ilegal, contra o sistema policial e penal da vila para conseguir retirar o primo da prisão.
A brutal tensão que pressiona o espectador durante cerca de dois terços do filme provém, fundamentalmente, de expectativas frustradas. Fomos educados pelo cinema a saber o que esperar quando vemos um homem negro a ser detido pela polícia sem razão aparente. Porém, Rebel Ridge é uma panela de pressão que se nega constantemente a explodir, apesar de apresentar todas as oportunidades para isso. A calma clínica que Saulnier traz ao seu novo filme contrasta gritantemente com aquilo que nos apresentou no início da carreira com a agressividade e violência de Blue Ruin (2013) e especialmente Green Room (2015). A comparação fácil com First Blood (1982) é perfeitamente pertinente se nos lembrarmos que também John Rambo estava a ser assediado pelas forças de segurança locais antes de partir para a carnificina que conhecemos, ainda assim Rebel Ridge é um pouco mais do que isso. A presença imponente e estoica de Aaron Pierre enche o ecrã, gentil e ameaçador ao mesmo tempo, de disciplina firme e coração suficiente para que esta trema. Não fosse o seu carisma silencioso, que eleva cenas que, com outro ator, poderiam parecer plenamente banais, talvez o sucesso de Saulnier acabasse por ser mais limitado, apesar das boas performances de Anna Sophia Robb e principalmente de Don Johnson, em modo caricatural total, mas não isento de charme e panache como o habitual xerife corrupto que representa o pior do sistema policial americano (e não só).
A vila em causa tem todos os indícios do típico vilarejo do sul dos Estados Unidos pintado pelo cinema com polícia militarizada, corrupção transversal e um racismo aparente no ar. Com isto, curiosamente Rebel Ridge não se inclina neste último ao contrário do que o crime que abre o filme – driving while black – fazia prometer. Em vez disso, Saulnier explora as profundas raízes capitalistas que se entranham no sistema judicial, um órgão regional, federal, nacional do qual se espera a garantia da segurança dos seus constituintes mas transformado num rolo compressor com objetivos de liquidez e produção de rendimentos próprios, em que, como em qualquer boa empresa, os meios justificam quaisquer fins se estes comprarem um Ford Mustang ao cabecilha (ou CEO em termos mais corriqueiros), sejam eles retirar a custódia de uma criança à mãe ou condenar à morte alguém que nada fez para estar nessa posição. “Cash is King”, citando Lewis Hamilton. Analisando à lupa, em Rebel Ridge o racismo estrutural que envolve o sistema policial não é esquecido, é simplesmente contextualizado através do prisma do capitalismo selvagem, como uma parte integrante de um mecanismo bem oleado de opressão que envolve todas as áreas da esfera social em que dificilmente é possível dissociar cada um dos seus elementos. É um olhar que, apesar de não ser novo, é menos habitual e Saulnier oferece-lhe alguma nuance interessante, mesmo que superficialmente.
Tudo isto colocado dentro de uma moldura narrativa que aqui e ali apresenta fragilidades, especialmente quando perde algum ritmo ao entrar na sua segunda hora e constrói cenas de ação, onde finalmente é permitido que a panela de pressão se transforme no barril de pólvora, que apesar de serem levadas a cabo por interpretações sólidas (e excecionais no caso de Pierre) têm uma geografia difícil de acompanhar e personagens de tal forma idiotas que a ilusão cai desgostosamente. Rebel Ridge está no seu melhor quando é comedido, calmo como a sua personagem central, e baixa uns furos quando se torna (parcialmente) aquilo que no início era esperado fosse a totalidade do filme.
Todavia, é ótimo voltar a ter Saulnier em boa forma, num filme que há muito tempo queria fazer e que passou por pesadelos de produção consideráveis (incluindo perder John Boyega, o que, ao ver Pierre, parece ter sido um milagre disfarçado de desgraça) mas que no final, ainda que com percalços aqui e ali, é mais uma sólida parceria com a Netflix e que continua a prometer um bom futuro ao americano e às suas personagens em constantes climas de fuga, sejam eles da polícia, de um grupo de neonazis, ou de si próprios. Aquelas tais expectativas frustradas, aplicam-se meramente a Rebel Ridge, porque, no que toca ao seu criador, este continua a cumpri-las.