Adaptado do romance clássico de Daphne du Maurier, estranhamente foi Rebecca (1940) o único filme de Alfred Hitchcock a levar a estatueta da Academia para Melhor Filme para casa. Digo estranhamente porque não é, de todo, o primeiro filme para onde a mente viaja quando se fala no realizador que eternizou as jovens de cabelos loiros enamoradas por homens perturbadoramente mais velhos. Portanto Ben Wheatley, que por si só já é um realizador que não reúne o maior consenso, tem aqui a tarefa ingrata de pegar em algo que já foi anteriormente calcado na história pelo mestre britânico. Ou seja, coragem não lhe falta.
Após um romance idílico em Monte Carlo, uma mera dama de companhia a senhoras da alta sociedade (Lily James), casa-se com um riquíssimo e elegante viúvo inglês, Maxim de Winter (Armie Hammer) e muda-se para a sua propriedade gigantesca perdida na costa britânica: Manderley. No entanto nesta casa ainda paira a sombra da antiga Mrs. De Winter, Rebecca, um ser que é lembrado de uma forma praticamente sagrada por todas as pessoas presentes, mas maioritariamente por Mrs. Danvers (Kristin Scott Thomas), a responsável pela propriedade e antiga confidente de Rebecca. Esta sombra abate-se sobre a mais recente e mais inocente Mrs. De Winter que parece encolher mais e mais sobre o peso de tentar ocupar o lugar de alguém que é vista como um anjo que Deus deixou fugir do céu.
“Last night I dreamt I went to Manderley again”. Da mesma forma que Sir Alfred Hitchcock abriu o seu clássico no despertar da década de 40, também Ben Wheatley começa o seu filme numa fantasmagórica passagem por Manderley, da mesma forma que Robert Wise introduziu Hill House em The Haunting, ou mais infamemente, como Orson Welles marca o mundo das artes com a cena de abertura de Citizen Kane (1941) em Xanadu. Todas estas cenas têm algo em comum. São um presságio do sinistro. De paredes com memória e fundações marcadas pela história.
E é muito sobre o peso do passado nos ombros do presente, que Rebecca conta a sua própria história, embora com resultados mistos. Se por um lado belíssima atuação de Lily James capta perfeitamente uma alma romântica e inocente a ser esmagada pelo fantasma da sua antecessora, na forma de uma performance absolutamente brilhante de Kristin Scott Thomas que é tão ou mais assustadora que qualquer matriarca que alguma vez passou numa produção de terror da Blumhouse, por outro lado, o filme esquece-se de Armie Hammer pelo caminho. A intenção de isolar a personagem de Lily James é interessante, mas o filme não levanta dúvidas suficientes, não é tem um tratamento tão frio como tinha o filme Hitchcock que fazia sentir que a estaria iminente o momento em que Manderley ia engolir a gentil Mrs. De Winter. Em vez disso, é mais romântico, mais fogoso e mais apaixonado, e se assim é, com o desaparecimento de Armie Hammer, desaparece também o foco de interesse da narrativa.
Ainda assim, Rebecca não é, de forma nenhuma, um falhanço. A montagem dos filmes de Ben Wheatley continua a ser muito personalizada, desta vez numa colaboração com Jonathan Amos, o editor de eleição de Edgar Wright, com várias sobreposições e cross cuttings que dão toda uma mística ao ínicio do filme, mas que vai perdendo gás a partir do momento em que abandonamos Monte Carlo e passamos para os salões gelados de Manderley. Esses mesmo salões mostram que o realizador sabe sempre escolher quem trata dos seus cenários e associando a isso, o seu habitual diretor de fotografia, Laurie Rose, desta vez num regime menos vistoso, é garantido que a mansão, que é quase uma personagem central da história, está tão, ou mais bela, que as próprias personagens que a habituam. Infelizmente essas mesmas personagens não estão ao serviço de um guião tão bom como aqueles com que Wheatley tem trabalhado anteriormente, porque falta alguma chama, alguma vivacidade, algum sal até em toda a produção. E do realizador de A Field in England (2013) eu espero um pouco mais.
No fim, pode-se dizer que Rebecca não está perto de chegar ao nível da obra de Hitchcock, mas também não parece estar muito preocupado com isso. É uma abordagem diferente à mesma história e, embora com algumas limitações de argumento, é cativante o suficiente e consegue manter os níveis de suspense parcialmente à tona para não tornar isto um melodrama absolutamente insuportável. A verdade é que Manderley continua bela, mas mais frívola que outrora.