As nossas decisões podem tornar-se nos stalkers no nosso futuro.
Reality Winner (Sidney Sweeney) é acusada de ter cedido informação confidencial relativa à interferência da Rússia nas eleições presidenciais americanas de 2016 à imprensa. Um mandado de busca à sua casa e um interrogatório é a consequência dessa acusação e o objecto de interpretação de Reality.
“Uma história baseada em factos verídicos” é uma frase muitas vezes vista no cinema, mesmo que por vezes essa base seja fortemente alterada ou especulativa. Tal não se verifica nesta longa-metragem, que faz uso do interrogatório realizado por dois agentes do FBI a Reality Winner na íntegra. Na verdade, a duração do interrogatório quase perfaz a duração do filme, que não chega a ter noventa minutos. Em vários momentos somos recordados de que tudo o que possa parecer improvisado ou um engano é, na realidade, a transcrição exacta do registo oficial do FBI. Esse facto acaba por nos convidar para uma recriação dos eventos que quase se assemelha a um documentário e reveste a história de uma veracidade que funciona na forma como nos prende ao enredo.
A peculiaridade do argumento ser praticamente na totalidade um diálogo pré-existente torna-se num elemento extremamente curioso na hora de falar sobre o elenco. A abordagem a uma personagem que existe no mundo real e está viva é, já por si, diferente da abordagem a uma personagem ficcional, mas abordar uma personagem real e viva com as palavras ipsis verbis como foram ditas no acontecimento retratado é toda uma outra realidade. Sidney Sweeney transcende-se na subtileza com que esconde o que sente até já não ser capaz de o fazer. A sua trajectória revela-se como cada vez mais imprevisível e por consequência bastante interessante de seguir. Depois do sucesso emEuphoria(2019-2022), optar por filmes tão diferentes como The Voyeurs (2021), Anyone But You (2023), Americana (2023), Imaculada (2024), o que se prevê que seja Eden (2024) e ainda acrescentando a sua participação na primeira temporada da série The White Lotus (2021-2025), permite-nos dizer que apesar de ser discutível a qualidade de algumas das suas escolhas, aborrecidas não são de certeza.
Josh Hamilton e Marchánt Davis, que interpretam o agente Garrick e o agente Taylor respectivamente, alimentam em nós teorias da conspiração sobre o que realmente estarão a pensar em cada cena, o que enriquece a nossa experiência a visualizar o filme. É como se a nossa própria imaginação de toda a ficção que já consumimos nos instruísse para a eventualidade de algo subitamente mudar de rumo e surpreender de alguma maneira. Tal não acontece necessariamente, mas fica no ar um elemento de estranheza e uma sensação de algo não bater certo com o que esperaríamos de uma operação deste género, que nos remete para uma possível discussão sobre a justiça do caso ou razões omitidas para ele ter sido conduzido da forma que foi. A interpretação das palavras e silêncios escolhidos entre o elenco e a realizadora Tina Satter é coerente e humana. As reacções que vemos no desenrolar da história podiam ser as nossas.
Sendo Reality um filme relativamente curto, não deixa de ter a sua acção basicamente limitada a um espaço – a casa de Reality Winner – e por isso, uma ferramenta usada com eficiência para nos cativar e conferir uma sensação de dinâmica é a edição da peça, usando algumas imagens reais do caso e passagens do texto, ou durante breves segundos mostrar o desaparecimento instantâneo da pessoa em cena para nos informar de partes que foram censuradas por serem confidenciais. A tensão está bem construída desde o início e mantém-se até ao final. Joga-se um prolongado jogo de ping pong na nossa mente sobre o que reside na linha ténue entre o que é e o que não é dito, e no final quem ganha somos nós, porque vemos o tempo a passar a correr por estarmos investidos na trama.
Uma estreia auspiciosa de Tina Satter como realizadora. Esperemos que não fique por aqui, porque tendo em conta esta primeira amostra, existe potencial para uma nova storyteller com personalidade e estilo próprios.