Rapito (2023)

de Pedro Ginja

Edgardo (Enea Sala) surge muitas vezes a olhar para a cruz de Cristo durante esta história. Enquanto no início é um olhar de curiosidade, fruto do seu desconhecimento sobre quem é este homem morto numa cruz, com o tempo esse sentimento vai sofrendo uma progressiva metamorfose. É sobre esse processo, e de como a sua visão do catolicismo muda com o seu endoutrinamento, que trata o último filme de Marco Bellocchio, de regresso após o belíssimo Marx Può Aspettare (2021).

Em Bolonha, durante o séc. XIX, Edgardo faz parte de uma grande família de origem judaica e prepara-se para se ir deitar. Após recitar o Shemá, com os seus familiares, alguém bate à porta e afirma que Edgardo foi baptizado. Segundo o direito canónico vigente em Bologna (parte dos Estados Papais) ele é oficialmente católico e por isso tem de ser retirado da família e ser educado na religião católica.

A escolha da oração Shemá não é um acaso, pois é a primeira oração ensinada às crianças judaicas e é uma declaração de fé, uma promessa de fidelidade a Deus. É a primeira oração proferida de manhã ao acordar e a última declamada no final do dia, antes de dormir. Edgardo, antes de ser retirado em pranto dos braços do pai, promete nunca se esquecer de rezar o Shemá todos os dias e todas as noites. Desde logo o ambiente imposto por Marco Bellocchio é de uma profunda tristeza face ao caos, dor e trauma impostos à vida do pequeno Edgardo mas, igualmente, de toda a família Mortara. Fá-lo, no entanto, com uma subtileza de louvar e nunca pelo caminho do sensacionalismo ou da atribuição fácil de culpas. Usa desde comparações da grande semelhança de costumes entres cristãos e judeus até a metáforas visuais da iconografia comum entre ambos, exacerbando o quão ridículo era este pensamento retrógrado da igreja, desesperada de manter a relevância numa Itália em período de grandes mudanças. Apesar de não praticante é visível o conhecimento de causa do realizador, fruto da sua educação religiosa conservadora às mãos da mãe, e isso transparece no modo como aborda o tema e constrói a teia de diálogos, por vezes demasiado formais mas sempre verdadeiros e assentes numa realidade crua e dura sem subterfúgios ou meias medidas de alívio de sofrimento dos envolvidos. Eram tempos com pouco espaço para a compreensão e para a defesa dos direitos humanos e, ao contrário dos dias de hoje, tudo ficava escondido por “debaixo do tapete”.

Pode parecer uma contradição mas, apesar disso, é fácil perceber quem são os vilões nesta história com dois dos mais asquerosos membros do clero de tempos recentes, por razões bem diferentes. O Papa Pio IX (Paulo Pierobon), mesquinho, vingativo e agarrado ao poder com unhas e dentes e o padre Feletti (Fabrizio Gifuni), um arauto dos bons costumes cristãos, intransigente e cruel em igual medida para cumprir a lei da Igreja. Ambos são memoráveis em grande parte devido ao argumento extraordinário e os diálogos sempre “no ponto” de Bellocchio, Susanna Nicchiarelli, Daniela Ceselli e Edoardo Albinati e claro, às suas interpretações extraordinárias em espectros opostos: o controlo, supressão e raiva contida de Fabrizio Gifuni, como Padre Feletti, e o olhar apavorado, as acções erráticas e o constante descontrolo emocional de Paulo Pierobon – verdadeiramente inesquecível como o papa Pio IX. Uma história só funciona se a atenção dada aos vilões é compensada com a dada aos “heróis” da história. E neste caso o mais importante é o pequeno Edgardo, interpretado por Enea Sala, com um inesperado range emocional para alguém tão novo. Acreditamos na sua confusão e desespero quando é raptado, no seu medo quando é recebido por estranhos mas também a sua curiosidade com os dogmas da Igreja e a sua crescente indiferença para com o seu passado com a ausência da família no seu dia-a-dia. A formação dessa carapaça de proteção do trauma é a progressão mais difícil de acompanhar e que será insuportável para quem é pai ou mãe. Numa das cenas mais marcantes, o reencontro entre filho e mãe, após uma longa separação, começa controlado e desprovido de emoção. As “mãos” da Igreja sobre os ombros do pequeno Edgardo despoletam o controlo, que Marianna Mortara, interpretada por Barbara Ronchi, corrói num diálogo cortante e num crescendo de emoções a que o espectador não pode ficar indiferente. É ela o coração do argumento, apesar do seu reduzido papel, mas nunca é menos do que magistral. Competir com uma mãe em “luto” pelo filho seria impossível por isso Salomone Mortara – o pai, interpretado por Fausto Russo Alesi, revela-o em desespero e num estado de impotência para combater a toda-poderosa Igreja católica e recuperar o seu filho. É constantemente atacado tanto pela família como pela comunidade acabando acusado de inércia e pouca convicção na luta. Parte-nos o coração ver o calvário que passam estes pais e, por isso mesmo, não será com certeza um filme muito popular ou revisitado regularmente tal é o sofrimento que “escorre” da tela para as nossas faces.

Em termos técnicos é uma clara vitória com uma fotografia austera e digna da mais bonita arte renascentista, no trabalho fenomenal de luz por Francesco di Giacomo, em clareza contrastante, parecendo afirmar de como se reveste de luz e escuridão, cada um dos seus protagonistas. O trabalho de recriação, apesar de pouco impressionante, acaba por se aproximar mais da realidade da altura e adensa, ainda mais, o fosso entre os privilegiados e os perseguidos. As decisões de edição são particularmente inspiradas porque permitem colocar-nos no papel da vítima, Edgardo, visão geralmente ignorada em filmes similares em favor de uma primazia nos comentários políticos ou cruzadas religiosas. Fá-lo com uma abundância de planos segundo o seu ponto de vista ou metáforas visuais que retratam a sua complexa viagem emocional. Nem sempre está presente em cena mas todos os “caminhos” levam à teia de implicações que este evento traumático causou na vida de Edgardo e de como impactou o seu futuro.

Marco Bellocchio retorna à ficção e retrata um episódio obscuro e perturbador do passado da Igreja Católica em Itália e dos seus efeitos sociais e políticos mas nunca esquecendo de dar prioridade a quem os sofreu em primeira mão – o pequeno Edgardo, raptado dos braços dos seus pais, e a família Mortara. Não encontramos soluções milagrosas, um moral da história ou mesmo qualquer tipo de resposta ou explicação mas sim um desejo expresso do seu realizador em explorar as discrepâncias e as contradições deste hediondo costume. Talvez seja esse compromisso de retratar a realidade do seu país, nos momentos mais negros, que não lhe permite ser amplamente reconhecido fora de Itália mas é urgente dar uma oportunidade a um dos grandes mestres do cinema italiano, ainda entre nós, de mostrar o seu talento ao grande público. Espero que após o brilhante Marx Può Aspettare (2021) e este igualmente inspirado Rapito seja possível. Bem o merece Marco Bellocchio.

4.5/5
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