Se porventura a biografia de Todd Haynes fosse escrita pelo próprio, nunca começaria com a frase “Todd Haynes nasceu a 2 de Janeiro de 1961 em Los Angeles nos E.U.A.” mas sim com as sensações e emoções do momento. Os detalhes seriam muitos e a atenção ao pormenor estaria sempre presentes assim como a total reverência com as suas personagens, nos bons e nos maus momentos. Porque Haynes nunca foi convencional, mas um provocador nato com um profundo respeito pela arte e por isso a sua biografia tinha de falar, essencialmente, sobre a sua maior paixão – o cinema.
Desde cedo começou a experimentar e a fazer os seus próprios filmes e até ao final da escola secundária tinha já realizado The Suicide (1978), sobre um rapaz que muda de escola após um episódio de bullying. Em plenos anos ’70, em que pouco se falava de bullying e muito menos de suicídio, Haynes começava já a fazer as perguntas difíceis que ninguém fazia. A sua face polémica atinge o apogeu cedo com Superstar: The Karen Carpenter Story, uma curta-metragem em que conta a batalha de Karen Carpenter com anorexia que a levou à morte. Misturando imagens de arquivo, entrevistas típicas de documentário e reconstituições de momentos-chave da vida de Karen e do seu irmão Richard usando bonecas Barbie, cria uma linguagem moderna, provocante e reveladora de que caminhos iria trilhar no futuro. Valeu-lhe também o seu primeiro inimigo, com Richard Carpenter a processar Haynes pelo uso indevido da sua música mas muito mais pelo olhar negativo com que saiu no final do filme, que acabou por ser retirado de circulação.
Isto não impediu Haynes de continuar o seu percurso livre de amarras ou de entraves em mostrar a sua veia artística e criativa. Este rank delimita, em termos de qualidade, as suas longa-metragens de melhor a pior mas agora que visualizei todos os seus filmes parece-me redundante falar nesses termos. Acaba por ser delimitado não por qualidade, mas por gosto pessoal de determinadas temáticas e, em alguns casos, a sua brilhante veia experimental que desconhecia por completo. A ideia de realizar este rank permitiu-me conhecer a obra deste singular realizador e inclui-lo na sempre crescente lista de grandes realizadores da história do cinema a seguir com a máxima atenção. Espero que tenha o mesmo efeito nos leitores desta singela homenagem a Todd Haynes.
9. Wonderstruck (2017)
“We are all in the gutter. Only some of us are looking at the stars.”
A sensação de deslumbramento que sentimos na infância é algo irrepetível, mas que tentamos reproduzir na idade adulta quase sempre sem sucesso. Porque, as primeiras vezes, vão sendo cada vez menos com o avançar da idade. Todd Haynes está numa missão muito clara neste filme, o de fazer algo dentro do mundo das crianças e da sua relação com a vida e a morte. Há uma enfâse clara no argumento na importância de ser verdadeiro com elas, mesmo quando, no mundo dos adultos, a tentativa é sempre de encobrir ou menosprezar a sua capacidade de entender conceitos complexos. Wonderstruck conta a história de duas crianças separadas por um período de 50 anos. Rose, em 1927, procura por uma actriz que admira e cuja vida está representada num livro de recortes, enquanto Ben descobre pistas sobre o seu pai num livro abandonado e foge de casa à sua procura. O encontro entre eles dá-se no mesmo local, a cidade de Nova Iorque e na sua missão de encontrar o seu lugar no mundo. Nesta adaptação do romance de Brian Selznick, também o autor do argumento, tudo funciona como é esperado, mas esse é o seu maior problema. Por ser algo em que não existe a directa intervenção de Haynes, tudo se revela como convencional e demasiado seguro. Aliado a isso, Oakes Fegley no papel de Ben, nunca nos dá mais que o mínimo aceitável principalmente quando Millicent Simmonds, na sua estreia, nos maravilha com a sua capacidade de revelar esse deslumbramento tão essencial de comunicar na história de Selznick. Felizmente encontramos Haynes inspirado e em estreita colaboração com David Lachman, na criação de uma identidade visual própria para cada um dos cenários presentes, na recriação histórica e visual em ambas as eras e por “dar vida” aos dioramas e representações de modelos do mundo real com a atenção ao detalhe que merecem. Todos estes factores elevam o filme para além do mediano, mas não o impedem de colocar Wondestruck no final da tabela de todas as obras de Haynes.
8. Dark Waters (2019)
“You knew. Still, you did nothing.”
Há uma sensação de pavor a cobrir este Dark Waters desde os seus primeiros segundos. Muitos antes de sabermos sobre o que é, já Todd Haynes anuncia ao que vai. Colocar os holofotes na escuridão das políticas empresariais dos grandes grupos económicos. Baseado num escândalo real sobre a empresa química DuPont e do seu historial de poluição impune de qualquer consequência, até que Rob Bilott (Mark Ruffalo) decide investigar o impacto ambiental das suas políticas empresariais numa pequena povoação de West Virginia, Parkersburg. Rob é o herói relutante, que sem a procurar acaba por se meter numa verdadeira luta entre David e Golias. O argumento é lento a revelar as complexidades do processo e essa constante incerteza é o seu maior triunfo. Mark Ruffalo parece, como a sua personagem, adormecido e anestesiado no seu trabalho e termina como um paladino imparável na busca da verdade e da justiça. Em paralelo a este impacto positivo, surge a implosão da sua vida pessoa e familiar, e Haynes não se compadece de mostrar o preço a pagar pela justiça. Por vezes é de difícil digestão, na revelação dos efeitos na saúde de milhares de pessoas, mas principalmente ao expor a relutância da população, mesmo claramente envenenada, em perder os benefícios e o status quo que a Dupont lhes proporcionou. No final o sentimento é de um desgaste emocional profundo mas de dever cumprido por Haynes. A missão a que se propôs é bem-sucedida mas não há como negar o facto de isto não parecer de todo um filme seu. E para fãs tanto do seu estilo “wild” e experimental como das suas histórias de afectos assentes na subtileza, acaba por saber a pouco e precipitar Dark Waters para esta oitava posição.
7. Poison (1991)
“A child is born and he is given a name. Suddenly, he can see himself. He recognizes his position in the world. For many, this experience, like that of being born, is one of horror.”
Primeira longa-metragem de Todd Haynes, estreado no festival de Sundance de 1991 e considerada uma das primeiras obras no movimento New Queer Cinema. O argumento é uma junção de três histórias distintas, mas com mais em comum do que aparenta ao início. Desde um aparente documentário de um miúdo de 7 anos que assassina o pai abusivo, ao terror provocado por um homem que ao beber um elixir de “sexualidade” se transforma num assassino leproso, e terminando numa história de amor entre dois prisioneiros que se reencontram na prisão após um encontro fortuito quando eram mais novos. Há audácia, coragem, amor pelo cinema e reverência pelo trabalho de Jean Genet relativo à cultura queer. Claro que, como qualquer primeiro filme, há muita experimentação, uma mistura opressiva de estilos, erros técnicos e inúmeras ideias mostradas que nunca se desenvolvem. Tudo conspira para um crescendo de claustrofobia, no modo como equilibra as três narrativas, e confirma Todd Haynes como uma certeza do cinema mundial logo com o seu primeiro filme.
6. The Velvet Underground (2021)
“There is no difference being a writer of a book or a writer of lyrics.” – Lou Reed
Há um sentido de dever neste documentário de contar a verdadeira história de uma banda sempre debaixo do radar, mas com um influência na evolução do panorama musical e de inspiração a inúmeras bandas. Citando Brian Eno – “O primeiro álbum dos Velvet Underground vendeu apenas 10000 cópias mas todos os que o compraram criaram uma banda” – isto não poderia ser mais claro. E claro, o elefante na sala de Andy Warhol ser o responsável pelo seu sucesso, quando tal não poderia estar mais longe da verdade. Quando os descobriu, já o som inovador e as letras sinceras e provocadoras estavam delineadas apenas ajudou, e muito, na sua apresentação ao mundo. Haynes tem os factos e a história da banda, assim como a colaboração de todos os intervenientes, ainda vivos, assegurados e por isso um acesso privilegiado a um riquíssimo arquivo de sons, imagens e vídeo. Tudo isto garantiria um documentário competente, mas não se fica por aí e cria uma trama digna de um drama “shakesperiano”, na explosiva relação entre o carismático Lou Reed e o perfeccionista John Cale, os fundadores da banda. Retratando visualmente o inspirador panorama artístico de Nova Iorque nos anos ’60 com um mosaico de momentos, pessoas e arte, consegue recriar o ambiente vivido naquelas sessões históricas de criação, diversão e loucura na “The Factory” de Andy Warhol. Essencial para amantes de música, de arte e do espírito rock’n’roll.
5. Safe (1995)
“I’m sorry. I know it’s not normal but I can’t help it.”
Lentamente, Carol (Jullianne Moore), caí numa espiral de paranóia relativamente aos químicos presentes nos alimentos. Torna-se doloroso e extremamente difícil de assistir à queda de Carol para níveis cada vez mais surreais de loucura, mas é-nos impossível deixar de olhar para esta descida ao inferno criada na mente de Todd Haynes. A principal razão para isto é Jullianne Moore, que transforma esta dona de casa desesperada por pertencer a algo, numa bomba relógio ambulante. Esta “doença” do mundo moderno mostra a mestria de Todd Haynes em colocar a nu as fragilidades da condição humana, sempre a um pequeno passo da loucura.
4. Velvet Goldmine (1998)
“The world is changed because you are made of ivory and gold. The curves of your lips rewrite history.”
Tudo neste filme é surpreendente e inesperado. Esperamos encontrar a história da ascensão da estrela de rock ficcional Brian Slade, personificada pelo magnético Jonathan Rhys Meyers, e a sua queda vertiginosa, mas o que obtemos é um complexo puzzle que mistura fama, obsessão, amor e uma infinidade de personagens memoráveis a rondar Slade. Desde o jornalista em busca da verdade por detrás do mito que acaba por se descobrir a si próprio; a esposa que tornou tudo possível mas que se perde na “viagem”; e claro Curt Wild, o enigmático candidato ao trono de Brian Slade. E depois, num casting fenomenal, colocar Christian Bale, Toni Collette e Ewan McGregor, respectivamente, nestes papéis é o quão perto do divino nos podemos aproximar. Nada do que parece é, e tudo o que parece ser algo acaba por se tornar o oposto do que deveria ser. Confusos? É bem provável que fiquem assim no final, mas nunca ficarão menos do que maravilhados com a obra que Todd Haynes nos presenteia.
3. Far from Heaven (2002)
“Miró. I don’t know why, but I just adore it. The feeling it gives. I know that sounds terribly vague.”
O melodrama clássico de Hollywood está de volta com esta homenagem sentida aos grandes clássicos de Douglas Sirk e Max Ophuls. O classicismo está presente, mas Haynes reveste-o de uma modernidade clara ao retratar uma família suburbana perfeita da América dos anos ’50, mas que a história acaba por se revelar como diametralmente oposta e com a inclusão de temas complexos contemporâneos como igualdade de género, diferença de classes, racismo e homossexualidade. A história de Cathy (Jullianne Moore), de Frank (Dennis Quaid) e de Raymond (Dennis Haysbert), é de todos os que sofreram na pele o que é viver numa prisão, sem grades de metal, a vida toda. Moore carrega o peso do mundo no olhar e nos gestos de ocasião, Quaid um poço de segredos e desejo homossexual reprimido e Haysbert contido nas emoções, mas com a raiva a borbulhar para além da superfície. Em comum a todos a sua profunda solidão, numa vida que não escolheram, retratada por Haynes nos olhares, nos toques hesitantes e nas conversas de circunstância. Com um argumento pleno de subtilezas dramáticas, um trio de protagonistas no topo das suas capacidades, um rol de secundários de primeiro calibre, uma fotografia vibrante e luminosa que nos transporta para uma era de ouro do cinema e uma recriação histórica até ao mais ínfimo pormenor, e temos um verdadeiro clássico digno de Sirk e Ophuls, mas que procura ir às “profundezas” do que está escondido por detrás das aparências. Esta devastadora história é um pleno de complexidade emocional e de verdades dilacerantes de um tempo onde o coração nunca tinha a última palavra. Faz-nos sentir abençoados e gratos por vivermos numa época em que existe essa opção, de ser livre no amor.
2. I’m Not There (2007)
“I accept chaos. I’m not sure whether it accepts me.”
Frase ideal para descrever este I’m Not There para quem nada sabe sobre ele: é uma lição de como os biopics deveriam ser construídos, independentemente das conquistas pessoais do indivíduo retratado ou de uma qualquer ordem biográfica. E quem mais indicado para retratar que Bob Dylan, o homem das mil faces e de constantes reinvenções musicais (a banda sonora é claramente um dos ex-líbris do filme). Aqui, seis alter-egos, qual Fernando Pessoa, pululam no argumento e expressam as várias facetas de um homem difícil de explicar. A edição e a justaposição caótica das histórias (reais, falsas, imaginadas, autênticas, exageradas, quem sabe?) e das suas personas servem, na perfeição, o homem em constante reinvenção desde que nos anos ’60 e que mudou o panorama da música americana. Desde Woody (Marcus Carl Franklin) uma criança adulta para os seus anos, até Jude (Cate Blanchett), uma estrela no auge da fama e da dúvida do que vale realmente a pena, ou Billy (Richard Gere) um vagabundo errante no Oeste americano em busca de justiça para o povo. Todos são Bob Dylan e no final também nós o somos.
1. Carol (2015)
“You seek resolutions because you are young. But you will understand this one day.”
Carol é a adaptação de um romance de Patricia Highsmith, datado de 1952, chamado The Price of Salt, que conta a história de amor entre Carol (Cate Blanchett) e Therese (Rooney Mara). E este é um filme centrado nos detalhes e nas sensações. Dos pequenos momentos da vida em que, pouco a pouco, nos apaixonamos por alguém. Quando, nos papéis principais, temos uma dupla de actrizes fenomenais como Cate Blanchett e Rooney Mara tudo flui com naturalidade. A isso não é alheio a fotografia luminosa de Edward Lachman, o cuidado na direcção de arte de Jesse Rosenthal e a atenção ao detalhe do guarda-roupa de Sandy Powell. Mas é a realização de Todd Haynes com uma progressão magistral na maneira como retrata um romance proibido, filmado por detrás de portas, espelhos e a grande distância e, com o passar do tempo, nos transporta para a proximidade de um toque pleno de intensidade, no início, até ao clímax da relação com a comunhão entre dois corpos apaixonados, sempre tão perto que sentimos as suas respirações a sussurrar no nosso ouvido. Porventura, o primeiro filme que recomendaria a alguém que não conheça a excelente filmografia de Haynes. E por todas estas razões o meu favorito.
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