A jornada para a 97ª edição dos Oscars foi longa, cansativa e repleta de controvérsias e inconsistências. Filmes favoritos passaram a ser filmes odiados, histórias estranhamente esquecidas ganharam vantagens repentinas e “claros” vencedores ficaram dissolvidos nesta viagem de prémios. Perante esta tão aguardada cerimónia, o nosso crítico Rafael Félix decidiu criar um ranking dos nomeados para o Oscar de Melhor Filme desta edição de 2025. Para citar a sua lista do ano anterior: “Subjetivo? Sem dúvida, mas sou eu que estou a escrever não sou?”
10. EMILIA PÉREZ
No mínimo, o pior nomeado ao Óscar de Melhor Filme da era moderna. Jacques Audiard, um realizador com inegável histórico de grandeza, concebe um filme tão imprudente e ofensivo que até a sua menção junto a outros nomes desta lista devia ser punida por lei. Este filme sobre a ex-líder de uma organização criminosa a tentar reconectar-se com a família que deixou após finalizar a transição de sexo é uma mescla problemática de temas e géneros sem o mínimo de coerência. Mesmo ignorando o facto de ser um filme sobre a realidade mexicana sem que Audiard a tenha estudado, mesmo ignorando a forma como a personagem trans é pintada como uma que se crê isenta de responsabilidades do seu passado pré-transição, e mesmo ignorando a pobre performance de Selena Gomez, Emilia Pérez é um desastre cinemático. As sequências musicais são lamentáveis, ausentes de ritmo ou brilhantismo lírico, assustadoramente aborrecido e tão mal construído dramaticamente e na sala de montagem que é um milagre que tenha sequer visto a luz do dia sem embaraçar aqueles responsáveis por ele. A evitar como a lepra.
9. WICKED
Não o desastre que podia ter sido, mas longe de brilhante. A adaptação para o cinema de um dos maiores musicais de sempre na Broadway, encabeçada por Cynthia Erivo como Wicked Witch of the West e Ariana Grande como Glinda, The Good – as personagens de The Wizard of Oz (1939) – pode ser vista de duas formas. Podemos discutir o quão bem adapta o material original – uma linha de pensamento ligada aos fãs devotos do musical – ou podemos discutir o nível de sucesso da tradução para o grande ecrã. O primeiro pouco nos interessa, e quanto ao segundo é um musical sem grande ambição, com um aspeto artificial, assustadoramente pálido e que muito raramente impressiona. Ariana Grande, surpreendentemente, destaca-se com a sua capacidade humorística e não é uma opção descabida para o galardão de Melhor Atriz Secundária. As músicas podem ter vozes poderosas por trás delas, mas é muito pouco para quase 3 horas de filme. Jon M. Chu claramente tem medo de cores.
8. A COMPLETE UNKNOWN
A quase obrigatória biopic das temporadas de prémios. Timothée Chalamet interpreta Bob Dylan durante os primeiros anos da sua carreira, culminando no Festival de Folk de Newport onde, contra todas as expectativas, transitou para os instrumentos elétricos, causando uma insurreição no público. Este filme já foi feito imensas vezes. Inclusive por James Mangold. Não há nada de novo para ver aqui. Ainda assim, é inegavelmente tempo bem passado na companhia de um Bob Dylan que tem tanto de génio como de detestável. Chalamet parece mais à vontade nas fantásticas performances musicais do que nas sequências dramáticas, onde pode ser acusado de fugir ligeiramente para a imitação aqui e ali. No geral, A Complete Unknown faz jus ao nome. No final, Dylan continua a ser uma personagem de brilhantismo inexplicável, alguém que parece tomado por um dom divino, mas que continua impenetrável atrás da sua persona. Honestamente, não creio que seja sequer necessário procurá-la num filme. Para isso é que nos deu 55 álbuns.
7. CONCLAVE
Perfeitamente agradável, um ótimo thriller papal, mas não mais do que isto. Adaptado do romance de Robert Harris, Conclave centra-se na corrupção e jogos de poder envolvidos na seleção do novo líder da igreja católica, com Lawrence a liderar o procedimento e os cardeais Tedesco, Bellini e Trambley a manipular os bastidores, procurando conseguir liderar a igreja de Roma. Uma gigante melhoria desde a violência gratuita e paisagem sonora ensurdecedora de All Quiet on the Western Front, Edward Berger constrói duas horas perfeitas de entretenimento, com um elenco a funcionar a todo o vapor e uma considerável graciosidade visual. Há uma linha ténue que atravessa todo o filme, questionando qual será a verdadeira definição de fé e onde estará o futuro para os antigos dogmas presentes na Igreja Católica, que dão substância a um filme que nem sempre se leva particularmente a sério, mas que trata o entretenimento da sua audiência com a máxima seriedade.
6. AINDA ESTOU AQUI
Walter Salles mergulha na autobiografia de Marcelo Rubens Paiva para apresentar a família Paiva e o seu cosmos familiar durante o início dos anos 70 e no auge da ditadura militar brasileira, quando o antigo deputado Rubens Paiva é capturado pelo exército e Eunice é obrigada a uma prova de resistência para manter a sua família viva. Salles, às costas de uma performance absolutamente inspiradora de Fernanda Torres, utiliza as dinâmicas familiares dos Paiva para expor os horrores da ditadura: os desaparecimentos, perseguições, a tortura – física e psicológica – dos cativos e dos seus, a insegurança, o medo. Erasmo Carlos, Gal Costa, Tim Maia enchem Ainda Estou Aqui, num misto de celebração, dor e resistência que vem da rádio e se sobrepõe às filmagens em Super 8 captadas pelas câmaras portáteis dos adolescentes Paiva, que captam a felicidade de viver e o calor familiar do Rio de Janeiro. O medo do regime está latente, todavia Salles parece afogá-lo no meio de um espaço familiar tão idílico que aparenta ser impermeável ao caos e violência do exterior. Até que o deixa de ser. Salles e Torres enaltecem a resistência do espírito com momentos de terror e momentos de comunhão familiar de uma beleza extrema, e não há forma mais nobre de enfrentar a opressão do que continuar a viver, tal e qual Eunice Paiva.
5. DUNE: PART II
Um épico de sci-fi como dificilmente se voltará a ver. A segunda metade do clássico de Frank Herbert é consideravelmente melhor que o seu antecessor pelo simples facto de este ter feito todo o trabalho de estabelecimento deste Universo, agora é desfrutar do desenrolar da jornada de Paul Atreides pela reconquista de Arrakis. Momentos de cortar a respiração e a elevação do cinema às suas maiores possibilidades formais. A escala gargantuesca do trabalho de Villeneuve é fácil de esquecer devido ao quão fácil este o faz parecer: do som aos fatos, dos sets à fotografia, tudo está onde devia estar. Feito para o maior dos ecrãs e totalmente digno dele, Dune: Part II é um feito cinemático monstruoso e, no meio de tantas ausências notadas nas nomeações deste ano, talvez a maior de todas elas seja a do realizador canadiano na categoria de Melhor Realização. O seu dia há de chegar, mas este talvez fosse o ano e este talvez fosse o filme.
4. ANORA
Um novo filme de Sean Baker, uma nova história centrada em sex-workers. Desta vez é Ani, stripper, que se casa com um dos seus clientes habituais, o filho de um oligarca russo. Ambos sabem que este casamento é uma transação: ele tem-na, ela tem a vida de luxo que sempre quis. Quando a família do jovem descobre que este casou com uma prostituta, envia o seu grupo de capangas para garantir que os recém-casados tratam do divórcio. Anora, por triste e emocionante que consegue ser, é a maioria das vezes hilariante. Passamos a grande parte do filme com Ani, num brilhante trabalho de Mikey Madison, a gritar, berrar e agredir cada um destes homens que a tentam arrastar para o registo. Baker brinca com a audiência porque sabe aquilo que estes esperam: armas, violência, ameaças, o habitual. Todavia, estes criminosos têm apenas a aparência de tal, nenhum deles parece ter particular vontade de estar ali, são todos meio desastrados, salvo Igor (outra performance merecedora do Oscar de Yura Borisov), o que abre as portas a um montão de comédia física que, de certa forma, vai abafando aquilo que por baixo vai borbulhando. Isto é, até ao terceiro ato, onde Anora deixa cair o seu lado jocoso, e demonstra o quão violento tudo isto é para Ani; alguém que apenas desconhece uma ligação emocional que não seja baseada numa transação.
3. NICKEL BOYS
Baseado no livro do mesmo nome que garantiu o Pullitzer a Colson Whitehead, RaMell Ross mostra-nos o poder que uma adaptação consegue trazer a uma obra literária. Filmado, praticamente na totalidade, na primeira pessoa, acompanhamos a amizade de Elwood e Turner, em plena América segregada. Dois jovens atirados para um reformatório onde os abusos e as agressões são frequentes e mortais – nos rapazes racializados, claro está. Inventivo e de certo modo visionário. Não é a primeira vez que vemos um filme filmado desta perspetiva, mas a forma como esta é uma parte tão ativa da narrativa, particularmente a nível temático, é algo que por aqui nunca vimos. Nickel Boys conta uma história com a câmara, mistura-as, torna-as, às vezes, indistinguíveis. Estas vão sendo interrompidas por inserções de blocos noticiários sobre as manifestações em Selma, viagens ao espaço e pedaços do cinema de Sidney Poitier. RaMell Ross, com Turner e Elwood, dá-nos os dois lados da luta interna daqueles que sempre viveram sobre opressão: o idealismo do que podia ser e a realidade daquilo que é. Somos várias vezes confrontados com as duas perspetivas de uma mesma conversa, e é interessante ouvir quem fala e ver quem ouve, e ver na cena seguinte, o mesmo discurso mas com os papéis invertidos. Ross oferece-nos novos mundos, novas formas de apresentá-lo e de comunicá-lo.
2. THE SUBSTANCE
O equivalente cinematográfico de uma bulldozer. Coralie Fargeat apresenta o filme mais agressivo do ano. Elisabeth, uma atriz que conheceu glória e que depois dos 50 se vê expulsa da indústria do entretenimento, utiliza uma droga experimental que cria uma versão “melhor” dela mesma, com uma condição: tem de trocar de corpo a cada 7 dias. Uma sátira cheia de body horror com uma mão cheia de Cronenberg, Fargeat confronta-nos com a violência social que se impõe sobre o corpo feminino. A realizadora francesa capta a nostalgia pela juventude e o ódio ao presente. Quando se vive uma vida inteira sobre padrões de beleza absolutamente artificiais com efeitos plenamente reais, a falta de amor-próprio torna-se o elemento principal do terror quotidiano. The Substance é o male gaze transformado em filme, é a visão definitiva de um mundo obcecado pelo corpo da mulher e essa visão incorporada por aquelas que veem a sua vida inteira moldada pelo olhar masculino. Revoltante para a digestão, diabolicamente divertido e constantemente emocionante, é um retrato da assustadora sociedade da imagem e da juventude eterna, transportada numa performance gigante e transformadora de Demi Moore.
1. THE BRUTALIST
O facto deste filme existir, só por si devia ser celebrado. Algumas coisas que se disse de Dune: Part II serão ditas aqui também, num contexto bem diferente. Seguimos a ascensão de László Tóth, um arquiteto húngaro e judeu que foge da Europa pós-Segunda Guerra e que se vê envolvido com um milionário que lhe encomenda um centro cultural gigantesco. The Brutalist é um filme sobre um arquiteto e a construção de um edifício. É também um épico de proporções grotescas fazendo lembrar as duas grandes obras de Sergio Leone: Once Upon a time in the West (1968) e Once upon a time in America (1984). The Brutalist tem esse nível de escala e grandiosidade. Na totalidade das suas quatro horas, Brady Corbet constrói um filme próximo de perfeito: com momentos visuais incríveis, sets de imaginação infinita, uma banda sonora de Daniel Blumberg – que é como que a moldura que faz o quadro ganhar a sua verdadeira cor, e performances que elevaram este elenco a outros patamares. Tóth é de tal forma bem desenhado que é praticamente inacreditável que não seja baseado numa pessoa real, isto é, parte culpa do génio de Corbet e parte do trabalho de Adrien Brody. Porém, a sua jornada tem pouco de fictício, e mesmo que The Brutalist tenha muito para dizer sobre arte e génio, tem ainda mais a dizer sobre a jornada do imigrante: que independentemente do seu talento, os sorrisos serão falsos, as palmadas nas costas serão condescendentes e a retribuição será sempre dada com condicionantes. Mas há duas certezas para Corbet em The Brutalist: dor é temporária e a arte prevalece. O trabalho é eterno. É o destino, não a viagem.