Pela 96ª vez (mais ou menos) aproximamo-nos da gala de entrega dos prémios que toda a gente concorda serem absurdos e, da mesma forma, toda a gente vê, e sente, e irrita-se e rejubila pelos seus. “Os Óscares só interessam quando ganham os filmes que gostamos” é redutor e semi-futebolístico, mas tem o seu pingo de verdade.
Ainda assim, 2024 não é um ano terrível no que toca aos nomeados. Isto relativamente a outros substancialmente mais medíocres e mesmo que tenha ignorando alguns filmes brilhantes como All of Us Strangers (2023) ou The Iron Claw (2023). Particularmente na categoria de Melhor Filme, todos os filmes parecem merecer estar lá, de uma forma ou de outra. Pode-se discutir se há trabalhos com mais méritos do que alguns daqueles 10, no entanto, os que efetivamente estão têm também espinha suficiente para segurar o seu lugar.
Como em tudo, uns são melhores que outros. Subjetivo? Sem dúvida, mas sou eu que estou a escrever não sou?
10. AMERICAN FICTION
De todos os nomeados, talvez aquele que tenha entrado mais tarde na corrida tenha sido American Fiction de Cord Jefferson, um filme sobre as frustrações literárias de um autor afro-americano que apesar de abraçado pela crítica nunca conseguiu vingar comercialmente, o que, segundo as editoras, se deve ao facto da sua escrita não ser “negra o suficiente”. Há muita perspicácia e humor no guião de Jefferson sobre a forma como a população negra americana é retratada nos média, em constantes clichés e variações de “escravos e mortos pela polícia que conseguem manter a sua dignidade antes de serem mortos no fim” e como isso é depois tomado em mãos como retratos definitivos e imutáveis por uma sociedade que na melhor das hipóteses é condescendente, na pior, profundamente racista (habitualmente os dois). Com todos os seus bons momentos e um elenco brilhante, American Fiction não parece conseguir concretizar nada com as suas ideias e vinhetas, cingindo-se a momentos particulares e passando ao lado de um remate final mais coeso que o poderia elevar a um nível diferente.
9. OPPENHEIMER
Nesta altura a aposta mais segura para levar a estatueta no final da noite, Oppenheimer é mais um filme de Christopher Nolan, como tudo aquilo que isso tem de bom e tudo aquilo que isso tem de mal. Impecavelmente concebido e realizado até ao mais pequeno do detalhe, a ascensão e queda de Robert J. Oppenheimer, o pioneiro da bomba atómica, encabeçado por um belíssimo Cillian Murphy e cerca de 1/3 dos atores de Hollywood, é longo e bem atuado, mas parece nunca conseguir penetrar dentro da couraça espessa da sua personagem principal, deixando para trás um filme sempre interessante, cativante e deslumbrante de olhar, mas frio ao toque, tão preocupado com a parafernália à volta da câmara que o interior das personagens fica para segundo plano.
8. BARBIE
O fenómeno do ano e com boas razões. O mundo incandescente e cor-de-rosa concebido por Greta Gerwig e Margot Robbie é tão bem-intencionado que se torna particularmente lamentável o nível de ódio que acabou por ter nalgumas áreas do digital. A boneca que cimentou padrões de beleza para o feminino absolutamente inconcebíveis durante décadas, vê se aqui colocada à frente da câmara a encarar-se a ela própria e ao seu legado, quando Barbie e Ken saem de Barbieland para o mundo real, onde o patriarcado, o capitalismo e os cavalos dominam o mundo. Raramente subtil, mas quase sempre perspicaz, Barbie é o feminismo a tomar de volta os seus símbolos de opressão, e se é justo dizer que há um “quê” de privilégio branco neste feminismo, também é igualmente justo dizer que há um espírito belissimamente inclusivo no filme de Gerwig, que, ingenuamente ou não, tenta agarrar a todos num abraço pleno de conforto. Também nos falta.
7. MAESTRO
Se antes temos o provável vencedor, aqui temos o patinho feio dos nomeados. É caso de estudo a forma como o mundo cinéfilo se virou contra Maestro e particularmente contra Bradley Cooper após a estreia do filme na Netflix. Ainda para mais, perante o filme que pouco ou nada faz para merecer esse nível de negatividade. Ainda que sofrendo de algumas das maleitas de Oppenheimer e falhar parcialmente em dar-nos a compreender as particularidades de Leonard Berstein, o lendário compositor com uma relação complexa com a fama e com a sua esposa, este consegue trazer um coração palpitante à película que atravessa a câmara quando capta Carey Mulligan num dos melhores trabalhos da carreira e é ela a maestrina desta segunda realização de Bradley Cooper, que se continua a cimentar como um dos próximos grandes atores-realizadores da próxima década, com uma realização arriscada e confiante.
6. THE HOLDOVERS
Há muito tempo que Alexander Payne não era tão bom. Esta pérola de Natal, em partes iguais deprimente, hilariante e adorável traz-nos o melhor de Paul Giamatti como um professor de feitio difícil que fica responsável por um aluno problemático durante o período do Natal numa escola onde a única pessoa presente, além dos dois, é a cozinheira, que acabou de perder o filho na Guerra do Vietname. O grupo improvável tem uma dinâmica brilhante e familiar, num filme que é de baixa manutenção e sem gigantescas consequências em jogo, mas a convivência com estas três personagens rodeadas pelo branco da neve e as paredes austeras do colégio são mais do que suficiente para garantir duas das melhores horas que 2023 ofereceu.
5. KILLERS OF THE FLOWER MOON
O épico de Martin Scorsese, em todas as suas horas de glória é extraordinário de se olhar e ouvir. É particularmente enternecedor ver aquele que é talvez a pessoa mais importante para o cinema moderno, com esta idade, estar a fazer trabalhos ao nível de alguns dos melhores da sua carreira. Eletrizante e assustador, Killers of the Flower Moon centra-se na massacrada nação Osage, nativos-americanos chacinados pelo petróleo entranhado nas suas terras. Além dos temas que seria habitual abordar num filme destes, Scorsese não esconde que esta não é a sua história para contar e expõe-se de uma forma tão íntima e tão honesta que criou aqueles que são os melhores momentos finais do ano.
4. ANATOMIE D’UNE CHUTE
Scenes of a Marriage e Hitchcock encontram-se no extraordinário novo filme de Justine Triet. Sandra Huller é a principal suspeita da morte misteriosa do marido e a única testemunha é o filho do casal, que, por sinal, é cego. Anatomie d’une Chute é uma exploração do casamento, das relações que o tempo deteriorou e as tensões por baixo das superfícies mais resplandecentes, enquanto brinca com as nossas percepções e preconceitos ao ponto de nunca nos permitir qualquer certeza sobre o que vai na cabeça da nossa personagem principal, numa tour de force da atriz alemã. É aterrador, estranhamento humorístico e profundamente tenso, implorando por múltiplas visualizações, não necessariamente para compreender a natureza do crime, mas para vislumbrar as complexidades de uma união de dois egos demasiado grandes para um só teto.
3. PAST LIVES
Liberta-te da fantasia do que podia ter sido, vive o que está a ser. A estreia miraculosa de Celine Song sobre as possibilidades e o amor que não aconteceu entre dois jovens que se encontram anos depois de uma paixoneta adolescente brinca e ignora as convenções do que esperamos e projetamos e apresenta-nos um filme com tanto a dizer e com um equilíbrio difícil entre ingenuidade e maturidade. O amor nas suas mais diferentes formas e expressões através de 3 países, 3 pessoas em três fases da vida e Nova Iorque há muito que não era tão bonita. Song e elenco saúdam 2023 com o romance mais impressionante do ano.
2. POOR THINGS
Um filme de cada vez, Yorgos Lanthimos vai-se cimentando como um dos realizadores visionários do novo século. A adaptação do conto de Alasdair Gray sobre Bella Baxter, uma mulher trazida de volta à vida por um cientista de métodos peculiares, é um esplendor de cor, música, humor e choque. Num filme com tamanha parafernália, ser Emma Stone aquilo que nos suga para o ecrã, num dos melhores trabalhos da carreira, é prova que entre Lanthimos e a atriz existe um nível de conexão e confiança capaz de produzir resultados comparáveis aqueles de De Niro e Scorsese. Poor Things é um filme sobre libertação e identidade, patriarcado e o seu absurdo, a patética fragilidade masculina e a paixão por estar vivo, único e incomparável, uma obra-prima dos tempos modernos.
1. THE ZONE OF INTEREST
Treze anos depois de Under the Skin e com vários anos em produção, The Zone of Interest veio finalmente à luz do dia. Como que por ordem do cosmos, parece que o timing é, lamentavelmente, o certo, com as cenas que acontecem em Gaza todos os dias, acompanhadas com indiferença do outro lado das vedações que a separa de Israel. Baseado nos diários de Rudolph Hoss, um dos principais gestores do campo de concentração de Auswitz, o novo filme de Jonathan Glazer acompanha a vida familiar de Hoss, numa vivenda pitoresca, com um grande jardim pleno de verde e flores, construída adjacente ao muro do campo onde os horrores aconteciam. O que traz The Zone of Interest a um lugar distinto de todos os outros filmes sobre os terrores do Holocausto é a sua capacidade de captar o sentimento de desligamento emocional e o menosprezo pela vida humana através de cenas familiares que podiam ser capturadas em qualquer outra casa, mas que funcionam em justaposição ao que não vemos do outro lado das parentes que se impõe junto às janelas da moradia. Os fogos vindos do campo enchem a noite de uma luz grotesca, os gritos são audíveis no meio de uma conversa sobre peças de decoração e marido e mulher discutem viagens a spas que só podem ser concretizadas depois do trabalho estar feito, trabalho esse que envolve objetivos produtivos contabilizados em destruição de vida humana. As escolhas que Glazer faz, os caminhos que toma e os vortexs que abre entre os horrores da ficção e as atrocidades da realidade são desoladores, únicos e serão um retrato definitivo sobre as capacidades destrutivas do ser. Falou-se muitas vezes do termo “banalidade do mal” quando se discutiu de The Zone of Interest durante os últimos meses, mas isso, perante os momentos de luz que o filme deixa passar por entre o seu tamanho bréu, parece redutor, há muito mais que isso em The Zone of Interest, assim como há muito mais dentro do coração humano do que a pura crueldade que enche cada canto de cada frame do novo trabalho de Jonathan Glazer.