David Paul Cronenberg. Orgulhosamente canadiano de classe média, a sua calma, a sua descontração e a sua simplicidade nas entrevistas e nos colóquios que fez ao longo dos anos têm um impacto estranho quando vemos um homem pragmático e bem-disposto por detrás de alguns dos filmes mais macabros dos últimos 50 anos. Cronenberg construiu uma equipa de “cirurgiões” que, com ele, removeram dos seus trabalhos todos os preconceitos e construções sociais repressoras do instinto e da mutação humana, permitindo-lhe desafiar novas ideias de género, tecnologia, sexualidade e identidade numa teia complexa de filmes que mostram tanto evolução nos focos temáticos como nas próprias mutações, que são temas centrais dos seus trabalhos.
Começou em body horror da pior espécie, induzindo uma boa quantidade de repulsa, censura e ataques pessoais numa fase inicial da carreira ainda muito crua e aventureira, onde se preocupava em montar conceitos simples, mas da forma mais grotesca e orgânica imaginável – basta olhar para a simplicidade da ideia de The Brood: “e se a raiva tivesse um corpo?”. O tempo refinou as questões que mexiam com a curiosidade de Cronenberg, e as metáforas corporais tornaram-se mais ligadas à mente e à forma como o mundo em redor do humano o pode transformar em algo diferente, superior e mais polido, e esta transformação mental tem posteriormente uma manifestação verdadeiramente física e real, até no próprio corpo – olhe-se para os últimos minutos de Videodrome e a mudança que sofreu a realidade vivida por Renn depois de encontrar aquela transmissão clandestina.
No entanto, os últimos anos têm mostrado um Cronenberg diferente daquele que vimos durante o século XX. Spider e A Dangerous Method são claramente filmes muito mais preocupados com o psicológico das suas personagens, enquanto Cosmopolis e Maps to the Stars são críticas e sátiras sociais, não sem antes serem precedidos por 2 crime thrillers excelentes: A History of Violence e Eastern Promisses. Vemos um realizador que continua a desafiar-se em cada filme, a expandir a sua tela e a esgravatar cada tema e conceito até ao mais ínfimo detalhe, para no fim, como o bom cientista que é, poder analisar os resultados obtidos com o olhar mais distanciado possível.
É graças aos seus colaboradores habituais – Carol Spier, Howard Shore, Ronald Sanders e Peter Suschitzky (que sucedeu a Mark Irwin após este desistir de Dead Ringers) – que Cronenberg tem conseguido ao longo de mais de meio século, redefinir as possibilidades que o cinema oferece e, mais importante ainda, a possibilidade de grandeza do ser humano quando liberto das suas algemas autoimpostas.
Não existe um mau filme na lista que se segue – no máximo, há alguns mais medíocres – mas há claramente inúmeros filmes que moldaram o médium durante as últimas décadas, desafiaram as regras daquilo que era possível fazer em frente a uma câmara e exploraram os mais peculiares cantos do ser humano de uma forma que, até hoje, se mantêm ímpar.
19. FAST COMPANY (1979)
“Well, you gotta take your rides where you can get ‘em.”
Anomalia estranha na filmografia de David Cronenberg, mas não por isso um mau filme. Há alguns anos que o realizador tem vindo a pôr em causa as características que o público e os críticos lhe impõem, quando se referem aos seus filmes como “mais ou menos Cronenberg”, e os seus argumentos são plenos de razão: defende-se dizendo que ele é o que a narrativa lhe pedir que ele seja. Ainda assim, é difícil olhar para Fast Company sem o mínimo esgar de confusão. O filme que segue o declínio na carreira de um piloto de drag races durante uma tourneé de competições ao longo do Midwest, é um melodrama que nunca perde uma oportunidade de needle drop para músicas que dificilmente podiam ser mais country rock americano dos anos 70′ e 80′. Ainda assim percebe-se o porquê de Cronenberg querer fazer este filme: motores a rugir, a ciência da construção do carro perfeito, o piloto que se torna um com o carro durante aqueles segundos que tresandam a óleo e a gasolina e a sexo (ocasionalmente). Fast Company deixou que Cronenberg fizesse algo mais clássico, melodramático e inconsequente onde desenvolveu técnicas que mais tarde viria a aperfeiçoar noutros trabalhos mais relevantes.
18. THE DEAD ZONE (1983)
“You are either in possession of a very new human ability… or a very old one.”
Pode ser dito que Fast Company é o filme menos “Cronenberg” de David Cronenberg mas o mesmo podia ser dito sobre The Dead Zone. Adaptação da obra de Stephen King, o filme centra-se em Johnny Smith – com Christopher Walken como protagonista –, um professor de Inglês que depois de um acidente que o colocou em coma durante 5 anos, descobre que ganhou a capacidade de ver o futuro das pessoas através de um simples toque. Há elementos habituais de Cronenberg, mas com reduzida centralidade quando comparado com que o tínhamos visto até então do realizador. A desintegração entre o corpo e a mente e a figura de um cientista tornam-se barulho de fundo em vez do tema central e The Dead Zone divide-se entre um crime thriller e um drama sobrenatural a funcionar como pano de fundo para a jornada de Smith que, depois de ver a sua anterior vida roubada em troca de uma maldição que ele não pediu, procura um novo propósito para a sua existência. É uma sólida adaptação de King, mas um trabalho mediano de Cronenberg com alguns momentos de brilhantismo que são mais anomalia do que regra. The Dead Zone é também um dos três filmes do realizador que não tem a música composta por Howard Shore, e nota-se.
17. M. BUTTERFLY (1993)
“Now that we embark on the most forbidden of loves, I’m so afraid of my Destiny.”
A reunião de Jeremy Irons e Cronenberg alguns anos depois de Dead Ringers tem um tom bem diferente do filme de 1988, mas é possível encontrar linhas espirituais que ligam os gémeos Mantle e o diplomata francês a viver em território chinês na década de 60′, René Gallimard, envolvido num romance com uma cantora da ópera de Pequim, que não é apenas aquilo que aparenta ser. O ambiente é mais romântico do a maioria da filmografia do canadiano, mas paira no ar algo mais do que apenas um amor proibido envolto numa intriga de espionagem. Cronenberg afasta-se da história verídica, contorcendo e moldando o material para este deixar à vista a história de um homem branco moldado pelo imperialismo que se vê perante uma realidade bastante diferente daquela que idealizava da cultura oriental, sendo Song Liling a confrontá-lo com os seus preconceitos ocidentais, que impunha com uma inocência quase condescendente. O realizador traz um pouco de Beverly Mantle a René, também este a ter de se ver em confronto com a sua própria identidade: agrilhoado às suas próprias construções sociais do que é o mundo, a fluidez e impenetrabilidade de Song Liling são como que uma extensão do ambiente à sua volta, todo ele estranho a René, que se vê constantemente a passear-se por áreas cinzentas de um mundo que antes tomava como preto e branco.
16. SHIVERS (1975)
“He tells me that even old flesh is erotic flesh. That disease is the love of two alien kinds of creatures for each other”.
O filme que chegou ao parlamento canadiano. O primeiro filme de Cronenberg – ou como ele diz, o primeiro filme em que foi pago – expõe as obsessões e temas recorrentes que viriam a marcar uma carreira: sexo sem tabus e sem barreiras sociais; violência crua; doenças, metamorfose, ciência e transformação biológica. São estes alguns dos pontos narrativos que fazem Shivers – um filme sobre um vírus venéreo, criado por um cientista irrelevante e implantado numa jovem promíscua, que infeta os residentes de um condomínio de luxo e os transforma em criaturas esfomeadas e descontroladas à procura de contacto sexual – um dos trabalhos mais chocantes e mais controversos do realizador e que podia facilmente ter acabado com a sua carreira ainda antes desta começar. Como a maioria dos filmes dos seus primeiros anos, Shivers tem um olhar quase clínico sobre a sua história, como se o próprio Cronenberg estivesse a fazer uma experiência científica, sem quaisquer julgamentos morais, para analisar os resultados empíricos obtidos. É simples, mas extremamente original, com um conceito – zombies que em vez de cérebros querem sexo por impulso de um parasita que se desenvolve no estômago – levado até às últimas consequências sem vestígios de pudores ou travões. Não é por acaso que Alien (1980) pede algumas coisas emprestadas a Shivers.
15. RABID (1977)
“Shooting down the victims is as good a way of handling them as we have got.”
Com o legado difícil de suceder ao (in)sucesso de Shivers, o segundo filme de David Cronenberg vê-o regressar aos temas que já havia explorado no seu filme anterior, mas desta vez a uma escala consideravelmente maior. Com a sugestão ambiciosa do seu produtor, o grande Ivan Reitman, Cronenberg escolheu Marylin Chambers, uma estrela pornográfica na altura, para encarnar Rosie, que após um acidente de mota quase fatal, recebe uma intervenção cirúrgica experimental numa clínica de cirurgia plástica e desenvolve um parasita de aspeto fálico debaixo do braço que apenas se pode alimentar de sangue humano, o que leva Rosie a seduzir homens e espalhar o caos por Montreal. Os temas de ciência falhada, metamorfose e sexualidade transitam de Shivers, assim como a abordagem metódica e fria de Cronenberg – sendo que desta vez o raio de ação aumenta, uma cidade em vez de um único edifício –, no entanto o valor amplificado da produção permite-lhe set pieces mais complexas ainda que com maior disciplina do que no filme anterior, o que mostra crescimento no processo criativo do realizador.
14. eXistenZ (1999)
“I actually think there is an element of psychosis involved here.”
O sucessor de Crash é um caso interessante. Pode ser encarado como uma sequela espiritual de Videodrome – e curiosamente é também o primeiro guião original de Cronenberg desde o filme de 1983 – quando vemos que a história de uma designer de jogos, com a cabeça a prémio devido à sua última criação, a mergulhar no seu mais recente jogo com um mero marketer para perceber se este ficou danificado durante o atentado à sua vida, tem temas que unem os dois filmes, mas com resultados diferentes. eXistenZ é uma reflexão interessante sobre a forma como os videojogos podem moldar a realidade e os esquemas de pensamento, confundindo a realidade com a fantasia, passando por devaneios sobre livre-arbítrio e liberdade artística, mas é um filme que é feito dos seus conceitos mirabolantes em vez de pela forma como estes estão articulados entre si. Ainda com os seus problemas, alguns deles envolvendo uma entrega algo desinteressada dos seus atores e outros pela falta de fluidez da narrativa e dos temas que explora, eXistenZ é fascinante na sua criatividade e na sua fisicalidade, conseguindo ter não só alguns dos momentos mais repulsivos da filmografia de Cronenberg, mas também observações bastante razoáveis exprimidas das forma mais aberrantes possíveis, transformando-o num trabalho que mesmo não sendo um home run, tem demasiado engenho para ser ignorado.
13. SCANNERS (1981)
“You’re a scanner, which you don’t realize. And that has been the source of all your agony. But I will show you now that it can be a source of great power.”
Há primeira vista, Scanners pode parecer algo desconjuntado e fragmentado em que nem todas as linhas narrativas fluem com a naturalidade que se pedia para um guião do próprio Cronenberg. O que não deixa de ser verdade, provavelmente derivado do pesadelo que foi a sua produção, com o guião a ser escrito no dia das rodagens, antagonismos entre os atores e mais um sem número de problemas. Mas também é verdade que mistura de uma forma incrivelmente original um enredo cheio de entretenimento sobre um conflito potencialmente catastrófico gerado por uma sociedade secreta de indivíduos com poderes telecinéticos, com uma análise sobre a forma como a estrutura social encara aqueles que, mentalmente, não encaixam nos padrões sociais. Algo que fica bem aparente na sala de reuniões quando, em resposta à descrição destas pessoas mentalmente incompreendidas como “patéticos” e “instáveis”, o Dr. Paul Ruth, numa belíssima interpretação de Patrick McGoohan, diz “apenas porque os seus dons são incompreendidos”. Os elementos habituais de Cronenberg estão presentes – cientistas falhados, experiências mal concebidas, body horror e uma atenção especial à psyque das suas personagens – mas desta vez com indícios de maior nuance e ambição narrativa.
12. THE BROOD (1979)
“The law believes in motherhood”.
Talvez o trabalho mais pessoal de Cronenberg. Na ressaca do seu divórcio pouco amigável e disputa pela custódia do filho não é coincidência que o realizador tenha escrito e realizado The Brood, o filme que mais se aproxima da estrutura clássica de um filme de terror. Na sua quarta longa-metragem, encontramos uma criança a ser aterrorizada por uma entidade demoníaca, enquanto a sua mãe se encontra reclusa e isolada numa clínica psiquiátrica a receber um tratamento experimental; o pai tenta ligar as duas histórias, culminando em 30 minutos finais de absoluto caos e violência dos melhores da carreira do canadiano. Mesmo com alguns problemas de ritmo, a forma original e quase absurda com que se aborda a fossa e a raiva que se cria num casamento e como esses sentimentos impactam de forma dramática a vida e o futuro de uma criança são suficientes para tornar The Brood um clássico do cinema de terror, com criatividade e momentos de cortar a respiração que podem desafiar até os mais fortes de estômago. Marca também a primeira colaboração com Howard Shore, que viria a dar a música a praticamente todos os seus filmes daqui para a frente.
11. EASTERN PROMISES (2007)
“Sometimes birth and death go together.”
O guião de Steven Knight levou Cronenberg ao seu primeiro filme sem um único frame gravado em solo canadiano e à sua segunda colaboração de quatro com Viggo Mortensen. Desta vez num papel que o vê transformar num membro da máfia russa em Londres, mandatado para resolver o incómodo causado pelo diário de uma menina de 14 anos que morreu a dar à luz a uma criança cuja identidade do pai e natureza da sua conceção pode pôr em causa todo o submundo do crime. Os temas habituais de Cronenberg estão sob a superfície – sexualidade reprimida, a dualidade da identidade e o que significa construirmos uma outra versão do “eu” em permanente instabilidade com o “eu” do passado –, mas Eastern Promises funciona bem além dos pontos-chaves da filmografia do canadiano. É um crime thriller fantástico em que ninguém é o que parece, com interpretações absolutamente brilhantes de Viggo Mortensen, Naomi Watts e Vincent Cassel, e incluí uma das cenas de combate mais viscerais e físicas de qualquer filme de Cronenberg – a já famosa luta na sauna. A par do filme seguinte desta lista, é uma entrada acessível ao trabalho do realizador, embora esta fase da sua carreira o tenha levado para terrenos bem diferentes e mais psicológicos do que aqueles que pisou durante os anos 70′ e 80′.
10. A HISTORY OF VIOLENCE (2005)
“You’re living the American Dream. You really bought into it, didn’t you? You’ve been this other guy, almost as long as you’ve been yourself.”
Durante anos têm-se feito comparações entre David Lynch e David Cronenberg. A natureza destas varia, mas é possível ver os dois realizadores como duas faces da mesma moeda: Lynch no surrealismo do sonho e Cronenberg no surrealismo do orgânico e da vida material. É em A History of Violence que vemos o maior cruzamento entre os dois, em que o borbulhar da violência e do caos por baixo da fachada do sonho americano, faz lembrar, mais do que uma vez, Blue Velvet. Tom Stall, um homem de família com uma vida pacata no interior americano, vê-se perseguido por criminosos apenas porque estes o tomam como alguém que ele diz não ser: o irmão desaparecido e antigo braço armado de um chefe do crime em Filadélfia. As sugestões de perversidade subtil que passeiam em bicos dos pés pelo quotidiano de uma all american family e a dualidade do homem que se forçou a transformar em algo diferente, são os motes que marcam o passo de A History of Violence, mais uma vez uma história sobre identidade e metamorfose da mente com graus variados de sucesso. Mesmo com a insistência constante nos mesmos temas, o canadiano consegue sempre encontrar uma nuance diferente, e nesta fase da sua carreira, o foco parece que se desvia da reconstrução do corpo e da mente em si, e o ênfase é colocado na coexistência daquilo que existe e daquilo que existia no seu lugar anteriormente. Viggo Mortensen nunca foi tão bom e ajuda Cronenberg a mostrar que também ele é capaz de oferecer romance a um conto tão violento, quando contracena com Maria Bello – ambos com uma química extraordinária e que oferece ao filme de 2007 uma carga quente de emoção que até então não tínhamos visto.
9. MAPS TO THE STARS (2014)
“On the stairs of Death I write your name, Liberty.”
O filme que antecedeu o hiato de 8 anos de Cronenberg é, apesar dos seus defeitos e da sua duração excessiva, um trabalho de tom único para o realizador. O guião de Bruce Wagner é um misto de sátira sobre a elite decadente e reles de Hollywood, com uma tragédia grega com vertentes incestuosas, ao qual Cronenberg traz um pouco do seu pragmatismo e incisividade para fazer emergir os tons absurdistas da vida das estrelas em Los Angeles. Discute-se assistentes pessoais toxicodependentes, traumas de infância relacionados com abusos sexuais de menores e atores-criança alcoólicos a fazerem sequelas dos filmes que lhes pagavam 300.000$ por semana quando tinham 9 anos, no meio de uma narrativa rocambolesca que é tão disparatada como é self-aware. Desafia descrições e é, como a maioria do seu trabalho pós A History of Violence: muito movido pelo diálogo e requer paciência e uma boa quantidade de boa vontade. Mas é tão agressivo e calculadamente engraçado na forma como olha para a população de Hollywood como um conjunto de estrelas cadentes com daddy issues, que é quase um milagre funcionar tão bem como funciona apesar dos seus tropeções esporádicos nalguma piada menos bem sucedida ou um desvio narrativo que se pode dizer desnecessário.
8. A DANGEROUS METHOD (2011)
“I’m saying perhaps true sexuality demands the destruction of the ego.”
O filme mais superficialmente formal de David Cronenberg é também um dos seus mais ricos. Parece natural que em algum ponto da sua carreira, Cronenberg se debruçasse sobre Sigmund Freud e acabou por fazê-lo baseando-se na peça de Christopher Hampton que descreve a relação profissional e, a certo ponto, quase paternal entre um jovem Carl Jung e um já estabelecido Freud, enquanto o primeiro cria um romance instável com uma das suas pacientes e futura génio da psiquiatria, Sabina Spielrein. A rigidez introspetiva da câmara de Peter Suschitzky em A Dangerous Method oferece uma tela austera onde Fassbender, Mortensen e Knightley – numa performance divisiva – podem mergulhar profundamente em diálogos incessantes sobre identidade, o poder da psiquiatria, método científico e sexualidade, que funcionam também como processos de psicanálise entre os intervenientes, que em cada troca de palavras, parecem estar a tentar invadir a mente da pessoa do outro lado da mesa. A proximidade, a transferência e a mutação da identidade e da mente quando em contacto com outra a um nível incrivelmente íntimo, como acontece na psicanálise, é um método perigoso que vê Cronenberg construir algumas das suas observações e discussões mais interessantes, sem nunca perder a emoção da tragédia de alguém que vai perdendo pedaços de si mesmo enquanto constrói um caminho incerto pelo progresso científico.
7. THE FLY (1986)
“Help me. Help me be human.”
Foi com The Fly que a carreira de Cronenberg se catapultou para um nível completamente diferente. Segundo o mesmo, até Ingmar Bergman tinha um VHS do filme em que Jeff Goldblum, após uma experiência malsucedida com teletransporte, vê-se lentamente a transformar numa mosca gigante. O filme ganhou estatuto de culto, muito à custa do insano nível de body horror com unhas a cair, líquido viscoso a escorrer pelos poros e uma criatura final absolutamente agoniante, mas The Fly é mais do que essa superfície tão ricamente trabalhada pelos efeitos visuais de Chris Wallas e banda sonora de Howard Shore. O confronto de Seth Brundle – num dos melhores trabalhos da carreira de Goldblum – com a sua própria metamorfose e posterior deterioração acelerada, é um comentário pleno de conteúdo sobre a forma como encaramos o envelhecimento e a deterioração inevitável do corpo, embora, bem ao estilo científico de Cronenberg, não seja claro que haja uma resposta clara e inequívoca ou uma tese sobre o assunto, apenas é exposta a temática e os dados obtidos são para ser analisados por outros que não o mestre canadiano.
6. COSMOPOLIS (2012)
“There’s a poem I read in which a rat becomes the unit of currency.”
O filme baseado no romance de Don DeLillo tem a curiosidade de ter sido trazido – e posteriormente produzido – a Cronenberg pelo produtor que segundo o realizador “detêm metade de Portugal”: Paulo Branco. Este entregou-lhe o romance que segue Eric Packer, bilionário e investidor, enquanto atravessa a cidade de limusine para ir cortar o cabelo e protestos rugem na rua contra o sistema capitalista que oprime a população. O diálogo é denso e entregue tão deadpan que o seu absurdismo só fica mais gritante quando Eric, ao longo dos seus variados encontros dentro do automóvel, com analistas ou agentes, mostra uma cada vez maior alienação da realidade provocada pela sua obscena riqueza, olhando para o ser humano como um número e para qualquer relação como uma transação, completamente impávido à destruição e caos causados pelo sistema que o tornou aquilo que ele é. Cosmopolis é mais que uma crítica ao capitalismo, é – e teria sempre de ser com Cronenberg – sobre o efeito da tecnologia na população, no desligamento criado pelo gigantesco número de possibilidades efémeras produzidas pela máquina capitalista, entrando em discussões sobre a natureza do tempo como uma expectativa permanente por um futuro utópico construído às custas de um presente catastrófico.
5. SPIDER (2002)
“Clothes maketh the man; and the less there is of the man, the more the need of the clothes.”
Foi o próprio autor do livro em que Spider é baseado que contactou Cronenberg e lhe disse que Raph Fiennes queria interpretar a personagem titular: um esquizofrénico, recentemente libertado do hospital psiquiátrico, onde passou a maior parte da sua vida, que deambula pelos subúrbios degradantes de Londres e reconstrói o trauma da sua infância, que o atirou para uma vida de enclausuramento. Cronenberg referiu-se várias vezes a Spider como o outro lado do espectro de A Beautiful Mind (1999), que pinta uma versão romântica e “hollywoodesca” de doença mental. Em vez disso, o cineasta não se preocupou necessariamente em fazer um retrato clínico da esquizofrenia, mas sim com a experiência de viver preso numa mente completamente fraturada, isolada e institucionalizada durante anos a fio, e que agora se vê obrigado, quase por compulsão, a encarar os fragmentos de memórias da sua juventude. Spider é uma projeção incrível, não sobre problemas psiquiátricos, mas sobre a forma como a realidade e o sonho são percebidos por aqueles que deles sofrem, e tem uma frieza arrepiante a lidar com temas que demasiadas vezes são romantizadas ao ponto da paródia. É uma interpretação assombrosa e extremamente física de Raph Fiennes, no filme mais subestimado de David Cronenberg.
4. DEAD RINGERS (1988)
“Bev, you haven’t done anything until I’ve done it too. You haven’t fucked Claire Niveau until you’ve told me about it.”
O projeto-paixão de Cronenberg que levou quase 10 anos a concretizar-se é um filme que o vê numa forma extraordinária e a mergulhar mais profundamente no desequilíbrio entre o corpo e a mente de dois gémeos idênticos que parecem partilhar uma alma separada no útero, encontrando na ginecologia uma forma de analisarem a sexualidade feminina que ambos parecem ser incapazes de entender: Elliot de forma emocional, Beverly de forma física. Os papéis dos gémeos Mantle foram recusados por Robert DeNiro, que não se sentia à vontade para interpretar um ginecologista, e William Hurt, que não queria ter de fazer dois papéis. A escolha acabaria por ser Jeremy Irons, no melhor trabalho da sua carreira, ao ponto de ter agradecido a David Cronenberg quando recebeu o seu Óscar por Reversal of Fortune (1990). O filme é uma exploração de diferentes camadas da psique humana, desde a fluidez da identidade e o diluir da diferença entre a postura feminina e masculina até à forma – de certa maneira, prática – como seria ter uma mente divida por dois corpos diferentes e tudo o que isso acarreta para o sentido de individualidade de ambos.
3. CRASH (1996)
“The car crash is a fertilizing rather than a destructive event.”
A Palme D’Or não lhe foi atribuída devido à repulsa que criou no presidente do júri daquele ano, Francis Ford Coppola, tendo, em vez disso, sido criado o Special Jury Prize de propósito para laurear esta perturbadora adaptação do romance de J.G. Ballard. Segue James (James Spader), recentemente envolvido num grave acidente rodoviário, enquanto este é engolido por um submundo de reconstituições de famosos desastres automóveis organizados por Vaughan (Elias Kosteas), um homem obcecado pela fusão espiritual e corporal entre o homem e a máquina. Crash é tão frio como as máquinas onde Ballard, Vaughn e companhia se passeiam e envolvem em cada vez mais estranhas experiências carnais, em que o fetiche e a luxúria, o homem e a máquina já não se distinguem, numa experiência de transformação da mente através do êxtase proveniente do casamento entre o humano e a tecnologia. A banda sonora de Howard Shore e as suas guitarras e harpas elétricas é agressiva e distorcida, mas também serve como fio condutor para a fantasia em que mergulha Crash, que parece deixar as suas personagens a viver num transe febril e lhes permite desinibições capazes de causar desconforto à mais mórbida das mentes. As suas ideias sobre o impacto da tecnologia no humano, abrindo-lhe portas a novos tipos de sensações, pensamentos e sexualidade, são tão difíceis de penetrar como as suas personagens. A excitação desconfortável e quase suja de Crash envolve-nos num feitiço banhado a óleo de motor e secreções.
2. NAKED LUNCH (1991)
“Exterminate all rational thought.”
A adaptar a obra de um dos escritores que mais influenciou o seu trabalho, Cronenberg constrói em Naked Lunch o seu trabalho mais impenetrável, mais frio e, sem dúvida, mais abstrato. É a história de William Lee e a sua viagem psicadélica por dentro de uma cidade quase alienígena que o envolve numa conspiração cheia de drogas pouco ortodoxas, máquinas de escrever vivas e escritores tão abundantes como excêntricos. O filme é uma mistura da obra original, de David Cronenberg e do próprio William Burroughs, o autor do livro. Naked Lunch é uma indecifrável mescla de temas, alimentadas copiosamente com drogas exóticas, que vão passando pela sexualidade reprimida, o pânico do escritor obsessivo e a relação entre o homem e a arte. Mas é a fluidez com que Peter Weller se passeia pelo ecrã, completamente impávido enquanto diferentes criaturas grotescas se materializam à sua frente ou máquinas de escrever com um ânus dizem que este será um agente infiltrado para desmascarar uma qualquer conspiração absurda, que torna todo este mundo de pesadelo alucinogénio algo que é inteligível ao mesmo tempo que é minimamente coerente. É talvez o filme menos acessível do mestre canadiano, mas é também o mais complexo, interessante e eternamente mutável, independente da quantidade de vezes que se possa ver.
1. VIDEODROME (1983)
“Death to Videodrome. Long live the new flesh.”
Esta é a verdadeira obra-prima de David Cronenberg. Uma escolha pouco original, mas que a sua recorrência é sinal do seu génio. Max Renn (James Woods), produtor de um canal de televisão especializado em pornografia soft-core e violência, cruza-se com um estranho programa captado através de um sinal pirata, onde se retrata cenas de tortura explícitas e homicídios de forma tão real que custa acreditar que sejam apenas ficção: esse programa chama-se Videodrome. Os efeitos especiais conseguidos pela equipa do lendário Rick Baker são infames, desde cassetes vivas até uma pistola fundir-se com uma mão, mas Videodrome – ao contrário, talvez, de algo como The Fly – não é relembrado necessariamente por estes extraordinários trabalhos dos artistas plásticos. O tom quase profético com que Cronenberg olhou para a televisão (e aquilo que viria a ser a Internet) como algo que teria um impacto direto na forma como o nosso organismo responde a violência numa era de dessensibilização é a verdadeira prova que era um filme largamente à frente do seu tempo. Renn é apenas um homem de negócios sem grande atenção à moralidade ou ideologia, o que importa é o número de visualizações, que se vê instrumentalizado por algo que ele não tem: uma filosofia. Essa filosofia é menos clara e muito se pode discutir sobre que conclusões se podem tirar de Videodrome e sobre a verdadeira natureza da realidade em que existe – como diz Brian O’Blivion “a televisão é a realidade e a realidade é menos que a televisão”. O que pretende dizer Cronenberg sobre o efeito transformativo que os media e a violência podem ter sobre o humano é complexo, mas o que é inegável é que a sua relevância é hoje ainda maior do que o foi em ‘83, e a sua criatividade e mestria mantêm-se ímpares até hoje.
3 comentários
[…] é o ser humano e o quanto a nossa experiência consegue ser restrita. O realizador canadense David Cronenberg, porém, tem uma visão completamente diferente sobre esse fator limitador. Para Cronenberg, o […]
[…] uma série de ideias que nós já tínhamos assistido, de certa maneira, na cinematografia de David Cronenberg e levou-as a outro nível. Portanto, os filmes têm um impacto e um poder de nos impressionar […]
[…] dizer, sem medo, que David Cronenberg possui uma filmografia próxima da perfeição. O realizador consegue combinar histórias […]