Ranked: Andrew Dominik

de Rafael Félix

Homem desempregado que ocasionalmente faz filmes. É a descrição que faz de si mesmo. Começou nos videoclips e na publicidade, como tantos outros, mas depois do sucesso do peculiar Chopper (2000), Andrew Dominik, australiano nascido na Nova Zelândia, rapidamente tornou-se um dos cineastas mais interessantes do século XX. Frio e calculista mas não isento de humor, todo o cinema de Dominik tem-se centrado à volta do mito, da fama e da farsa por trás da História. Em várias ocasiões vimo-lo a agarrar-se a lendas, vivas ou mortas, da cultura folclórica ou da esfera mediática, e explorar os mitos por de trás das narrativas que os construíram, de Jesse James a Marylin Monroe, de Nick Cave à personificação do capitalismo. Dominik é obcecado por analisar storytelling e transpô-lo para o seu próprio storytelling, narrativo e visual, e a sua capacidade de tornar épicas, histórias tão intimistas sobre figuras tão gigantes, tornam-no um realizador ímpar a trabalhar nos dias de hoje e um que, em cada um dos filmes, nos ofereceu uma passagem para entender a fragilidade humana de humanos que tomamos como Deuses fugidos do Olimpo.

6. BLONDE (2022)

“She doesn’t have any well being. She is a career.”

Foi uma década entre narrativas para o realizador australiano. A sua adaptação do livro controverso de Joyce Carol Oates tornou-se um filme tão ou mais infame do que a obra em que se baseou, mas com resultados mistos. Se esta vida imaginada de Marilyn Monroe, numa performance brilhante de Ana de Armas, é prova que Andrew Dominik é um dos realizadores contemporâneos mais cínicos e talentosos ao pintar um quadro de violência e misoginia absolutamente visceral e grotesco, com momentos de deleite técnico apenas ao alcance dos melhores. No entanto, é o único filme do realizador que mostra, em variados momentos, alguma falta de disciplina e bom-senso no tom, no ritmo e no grafismo das atrocidades que recaiem sobre Monroe, tornando Blonde um longo e monótono catálogo de diferentes cenas de abusos físicos, psicológicos e sexuais. É um olhar cruel sobre fama, mito e identidade mas é também cruel para com a sua inspiração e, por louvável que seja muito do trabalho que é feito em Blonde, há linhas que se ultrapassaram no processo que são, no mínimo, questionáveis e no máximo irresponsáveis. Brilhante e atroz ao mesmo tempo, talvez mais a segunda que a primeira.

5. THIS MUCH I KNOW TO BE TRUE (2022)

When me and Warren get together in a room, terrible things happen.”

O filme “surpresa” que Dominik construiu em conjunto com Nick Cave e Warren Ellis, onde são interpretadas diversas canções dos álbuns Ghosteen e Carnage, e Cave fala dos seus projetos pandémicos paralelos – desde os Red Hand Files até à cerâmica –, tem uma aura muito diferente do seu irmão espiritual One More Time With Feeling (2016). Esse estava carregado de tragédia e melancolia, enquanto This Much I Know to be True foca-se muito mais na música e em construir produções luminosas e de câmara errante para dar um elemento quase transcendental a temas que já de si parecem ter caído de algum canto escondido do céu. Falta-lhe um pouco mais da substância filosófica que já vimos das colaborações de Dominik, Cave e Ellis, no entanto a beleza das composições aliadas à soberba realização e à riquíssima fotografia íntima e hipnótica de Robbie Ryan fazem de This Much I Know to be True absolutamente essencial para qualquer fã do duo proveniente dos Bad Seeds.

4. CHOPPER (2000)

“I’m just a normal bloke… a normal bloke that likes a bit of torture!” 

Antes de Chopper, Eric Bana era maioritariamente conhecido pelo seu trabalho como comediante na televisão australiana, tendo sido o primeiro filme de Andrew Dominik o seu primeiro papel palpável destinado ao grande ecrã. Isto torna ainda mais caricato o facto do trabalho de Bana como Mark Brandon “Chopper” Read, um famoso criminoso australiano e mentiroso compulsivo que se tornou um autor de bestseller quando ainda estava preso, ser uma das mais extraordinárias interpretações da década de 00’. Chopper revela que o interesse de Dominik por explorar a farsa por trás dos mitos criados à volta de personalidades ambíguas e/ou criminosas começou desde cedo, com o seu filme de estreia a ser, ao mesmo tempo, um estudo de uma personagem que é explosivamente imprevisível e comete atos de violência grotescos gratuitos por razões que Dominik nunca deixa totalmente claras, e também uma análise da forma como os media se alimentam destas histórias, romantizando os seus crimes, enquanto os transforma em aberrações para a reality tv. O realizador neo-zelandês não cai nestas armadilhas e consegue manter o equilíbrio ao mostrar compaixão para com “Chopper” sem nunca celebrar a violência quase gratuita que espalha pelo seu caminho, muito suportado pela capacidade de Bana de dar humanidade e fragilidade a uma personagem muito pouco empática, e é nele que se centra o gigantesco sucesso que é Chopper.

3. THE ASSASSINATION OF JESSE JAMES BY THE COWARD ROBERT FORD (2007)

I can’t figure it out. You wanna be like me? Or do you wanna be me?” 

Uma exploração intensa sobre a construção e desconstrução de mitos e ídolos, Andrew Dominik oferece neste western um épico repleto de personagens miseráveis, cobardes, infelizes e patéticas que giram à volta da figura do lendário Jesse James. The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford assume a estrutura de um conto histórico sobre a vida e morte de Jesse James (Brad Pitt) às mãos de um jovem criminoso que sonha ser como ele, Robert Ford (Casey Affleck). Este último é uma jogada de casting brilhante com o seu sorriso arrogante e tom de voz cobarde que lhe aparenta uma fragilidade de espírito que dificilmente podia ser encontrada noutro ator. Mas é em Pitt que encontramos a verdadeira grandeza do segundo filme de Dominik, na melhor performance da sua carreira, numa personagem assustadora, explosiva e cruel, mas com uma humanidade e melancolia tão profundas que é como se víssemos este mito do Oeste como aquilo que ele devia ser: um rapaz frágil, paranoico e carente. The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford é exatamente sobre isto. Espreita por trás do mito, debruça-se sobre as mentiras construídas e a necessidade de admirar algo, ou a imagem de algo, para completar as lacunas que nos faltam em espírito. É um filme de imagens imperfeitas, admiração, raiva, inveja e cobardia, e Roger Deakins dá-lhe um aspeto frio e doente, quase como um sonho febril que as harpas e cordas de Nick Cave e Warren Ellis transformam numa canção de embalar, cantando a balada de um Jesse James mais humano do que mítico. Salvo algumas vinhetas narrativas que acrescentam minutos desnecessários a um filme por si já bastante longo, The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford é um dos melhores westerns do século. É rico tematicamente, é feito com uma mestria rara e mostra dois atores – principalmente Pitt – no topo das suas capacidades.

2. ONE MORE TIME WITH FEELING (2016)

I don’t believe in the narrative anymore.

O primeiro dos dois documentários de Dominik à volta da figura magnética de Nick Cave é uma reflexão profunda e plena de poesia sobre a vida, a morte, o luto, o processo criativo, o envelhecimento e o próprio ato de filmar uma realidade narrada. Centrado na gravação do 16º álbum de Nick Cave and the Bad Seeds – Skeleton Tree –, One More Time with Feeling serve como uma experiência artística de uma beleza ímpar no seu preto e branco a acompanhar a profunda tristeza e tragédia que emana da música de Cave, num álbum que foi construído à sombra do falecimento do seu filho de 15 anos, Arthur. Dominik é um amigo de longa de data do músico, o que ajuda à intimidade do documentário, mas que também permite que o próprio processo de construção do filme, desde a sua captura até à razão ou pertinência da sua existência, seja posta em causa, seja pelo realizador ou por Cave. Este deambula, não raras vezes embargado com o peso da perda em cima dos ombros, por palavras e versos que tentam inutilmente dar lógica a uma vida que foi irremediavelmente fragmentada pela tragédia, falando da forma como o trauma impactou a sua música, o que mudou e o que ficou depois dos acontecimentos implícitos em Skeleton Tree. Com este retrato íntimo, a filmografia de Dominik volta a espreitar por trás de uma figura notoriamente extravagante e complexa, mas mais que isso, é um filme sobre alguém que, no seu ponto mais baixo, desespera pela capacidade de se ligar ao outro, de tocar o outro, em espírito ou através da sua música, e que precisa constantemente de se lembrar, como ele próprio diz “de ser amável para o outro”.

1. KILLING THEM SOFTLY (2012)

“America’s not a country. It’s just a business. Now fucking pay me.”

Seguimos Jamie (Brad Pitt), um fixer (à falta de expressão melhor), chamado para restabelecer a ordem no sistema económico da Máfia local quando este colapsa, devido ao ataque a um dos seus jogos de póquer ilegais, causando uma “perda de confiança” do mercado. O terceiro filme de Andrew Dominik abre com um dos discursos de Obama sobre o sonho americano a ecoar no caminho de um criminoso de baixo calibre a atravessar um túnel escuro rumo a um bairro de lata com aspeto pós-apocalíptico. Este é vigiado por dois cartazes gigantescos colocados lado a lado: um de McCain outro de Obama. O ano é 2008. A primeira palavra entoada? América. A obra-prima pouco valorizada de Dominik é uma metáfora tão descaradamente óbvia que é mais que claro que esse facto não é inocente. Os atos de violência a que assistimos em Killing Them Softly, parte do processo de revitalização do mercado a cargo de Pitt (numa das suas melhores performances), são cometidos no meio da rua e sem ponta de subtileza, no entanto não há sequer um murmúrio de auxílio ou humanidade. Esta brutalidade e selvajaria está aos olhos de todos, mas Dominik faz de nós espectadores, e não raras vezes, cúmplices. Estas ações são negociadas vezes e vezes sem conta, entre salas, bares e carros escondidos, em que todas as conversas não passam de vendas ou assinaturas de contratos verbais. Tudo isto acontece com as vozes de políticos em campanha a encher as rádios e as televisões sobre o colapso do mercado financeiro e nos sacrifícios que terão de ser feitos para o restabelecer. Com estes elementos, Dominik transforma o mundo do crime de Killing Them Softly num reflexo perfeito do mundo corporativo e capitalista de Wall Street, deixando poucas dúvidas sobre as diferenças – ou semelhanças – entre estes dois mundos. É um país sem futuro e sem comunidade, apenas transações, num retrato pouco esperançoso, mas pouco fictício, construído por um realizador no topo da sua carreira.

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2 comentários

Juliana Batalha 28 de Outubro, 2022 - 18:37

Sucinto, muito bem elaborado!

Juliana Batalha 28 de Outubro, 2022 - 18:35

Sucinto e extremamente bem escrito.

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