Raging Grace (2023)

de João Iria

“Nós, como comunidade, nascemos de guerreiros, nascemos do fogo. Os colonizadores utilizaram o fogo para incendiar a nossa linguagem e a nossa cultura mas não consegues queimar o que está sempre a arder.”

– Paris Zarcilla, entrevista para o Fio Condutor

A raiva é o vermelho cinemático. Sinónimo do descontrolo humano e uma representação da inerente violência escondida dentro do nosso olhar, delicada e vulnerável como porcelana, sempre na margem da rutura, prestes a despertar um profundo estado tenebroso. Na sétima arte, a raiva é recorrentemente visualizada como uma característica sombria, apropriada para seres desprezíveis ou abusivos, uma reflexão de um indivíduo cuja alma está perdida na sua malícia. Contudo, a raiva é simultaneamente interpretada como uma libertação emocional; uma inevitável explosão nuclear sentimental perante a opressão exterior de uma sociedade desinteressada no nosso sofrimento – uma que causa esse mesmo sofrimento –; uma revolta contra esta sufocação interior, cuja asfixia surge ocasionalmente das nossas próprias mãos, crenças e espírito, quando este é instruído pelo mundo para calar e obedecer. A raiva como um portão para a liberdade.

É este o conceito que Paris Zarcilla explora na sua primeira longa-metragem, Raging Grace (Graça Furiosa), uma história sobre Joy (Max Eigenmann), uma mulher filipina imigrante que trabalha no Reino Unido como empregada doméstica para indivíduos que consideram a sua existência como inferior, uma potencial criminosa, um objecto sexual ou um vácuo para expelirem um formato de sentimentalismo arrogante que acreditam ser empático. Joy dedica o seu tempo para famílias que possuem tudo o que ela deseja entregar à sua filha, Grace (Jaeden Paige Boadilla): conforto. Apesar de ser constantemente rejeitada por este mundo, esta protagonista esforça-se para ser uma cidadã oficial do país, entregando corpo e alma neste confronto com um futuro incerto. A esperança surge numa inédita oportunidade que coloca Joy a trabalhar numa mansão para uma mulher, Katherine (Leanne Best), e o seu moribundo tio, Garrett (David Hayman), lentamente a desvanecer com cancro. A sua promessa financeira e o alojamento neste espaço é suficiente para compensar os comentários e as atitudes condescendentes desta estranha personalidade, uma que esconde segredos obscuros nos cantos desta casa, caminhando como fantasmas, vidrados num passado incinerado.

As chamas da colonização persistem em arder, perseguindo as personagens consistentemente no seu percurso e transformando estas em prisioneiras, uma ideia refletida na imagem desta película, contida num aspect ratio de 4:3 precisamente para recordar que mesmo numa mansão, Joy permanece reclusa deste sistema, impedida de escapar e encontrar uma vida de conforto. Durante os primeiros minutos de Raging Grace, desvendamos esta protagonista a acordar em pânico, sobressaltada, imediatamente em movimento; um acontecimento frequente no desenvolvimento deste filme. Joy está isenta deste descanso, o seu sono é sempre interrompido com gritos, medo e uma tremenda ansiedade. Enquanto Grace é acomodada em posições desconfortáveis, escondida dentro de armários para poder continuar a viver neste ambiente. O argumento de Paris Zarcilla elabora uma formosa homenagem aos pais imigrantes filipinos e à sua luta na construção de um futuro lar para os seus filhos. É uma história verdadeiramente poderosa, emocional e profunda. O realizador compreende que o seu intrínseco medo, devido às suas próprias experiências, fomenta esta visão de necessidade de restrição, com as suas crianças constringidas a moldar os seus corpos, comportamentos e identidades perante o seu redor, independentemente dos seus limites.

Raging Grace expressa o seu terror cinemático na experiência migrante e no impacto do colonialismo dentro da identidade filipina. Os jumpscares são formados por palavras, olhares e a pesada e desconfortável angústia de permanecer numa casa de horrores, sendo esta a única alternativa existente para sobreviver. O seu comentário sobre classes sociais é pendurado no ecrã como um espanta-espíritos amaldiçoado, evocando falsos sons de esperança, saúde e fortuna para uma empregada doméstica cuja rotina diária envolve uma forte proximidade com a riqueza alheia destas famílias britânicas. Funciona como uma ilusão, excessivamente perto até os olhos não conseguirem decifrar a sua fisicalidade ou o seu significado. No entanto, Zarcilla exibe uma esperança agridoce na sua primeira longa-metragem que incentiva as suas personagens a perseverar face à ignição do fogo. Naturalmente, pois como o realizador mencionou, o povo filipino nasceu do fogo.

A raiva manifestada como um fundamental ato de liberdade, como um protesto por justiça, uma epifania mística transformativa, e um apelo por uma vida. Raiva é uma essencial componente da nossa voz, uma recordação que essa voz existe e deve ser ouvida. As surpresas no argumento de Raging Grace mantêm o espectador atento e investido no seu drama e horror; as fantásticas performances do seu elenco, principalmente de Max Eigenmann e Jaeden Paige Boadilla, ambas a encarnar as suas personagens com uma naturalidade extraordinária – sentimos a sua distância, frustração, carinho e amor além do ecrã –, capturam uma imediata conexão emocional com a audiência, mas é a sua voz, a voz de Paris Zarcilla, no fundo desta história, que destaca Raging Grace dos seus contemporâneos. O cineasta sinaliza a sua entrada na sétima arte através de fumo, alastrado pelos céus, a pronunciar-se como um grito de raiva; um grito que determina o fogo como a sua voz.

3.5/5
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