A 28ª edição do Festival promete perspetivas contemporâneas para compreender o lugar que a comunidade queer ocupa no desafiante contexto mundial de 2024.
Depois das grandes conquistas dos movimentos sociais iniciados nos anos 1960 e das contraculturas, palco de construções utópicas que fizeram crer num mundo melhor e mais justo, assistimos hoje às crescentes assimetrias sociais, LGBTQI+fobias, xenofobias, expressões de ódio disparadas em todas as frentes. É este o contexto que não podia deixar de ser o gatilho para a programação do Queer Lisboa 28, que regressa aos habituais Cinema São Jorge e Cinemateca Portuguesa, entre os dias 20 e 28 de setembro. Os muitos filmes que habitam esta edição do festival propõem-nos um olhar complexo sobre as realidades das pessoas e comunidades LGBTQI+ nas mais diversas geografias, nos seus confrontos externos, mas também internos, no que é que significa ser-se queer, hoje, nas suas múltiplas expressões e desafios. Um cinema que gradualmente olha para fora, que abraça o que está à sua volta, que pensa e ousa desenhar soluções, sejam elas puramente pragmáticas ou utópicas.
No programa figuram alguns dos títulos mais celebrados no recente circuito de festivais de cinema internacionais, chegados de Cannes, Locarno ou Berlim; mas, também, muitas surpresas inéditas por descobrir. Filmes oriundos de geografias tão díspares como Vietname, Grécia, Estónia ou Guam. Cinematografias sem temor em abordar questões sensíveis como a crise dos refugiados no Mediterrâneo, o conflito no Médio Oriente ou o alerta ambiental, mas títulos, também, sem preconceitos no momento de procurar pontos de evasão: não faltam propostas irreverentes, obras radicais que exploram os limites da representação explícita da sexualidade, e até paródias e comédias com segundas leituras. São, ao todo, 108 filmes, assinados por homens cis num 54%, por mulheres cis num 30% e por pessoas trans ou não-binárias nos 16% restantes.
Aos títulos e atividades anunciados durante as últimas semanas – a retrospetiva dedicada a William E. Jones em colaboração com a Cinemateca Portuguesa, o Queer Focus, os filmes de abertura e encerramento, as sessões especiais e os títulos que integram a Secção Panorama -, juntam-se agora os filmes que compõem as cinco competições oficiais do festival, a Hard Night, o anúncio de uma série de debates que, uma vez mais, pretendem espoletar a discussão sobre várias questões sociais e culturais de enorme pertinência, e a divulgação das atividades paralelas: performances, exposição e festas.
O júri da Competição de Longas-metragens é formado pela atriz Cristina Carvalhal, pelo realizador Márcio Laranjeira e pela artista e performer Tita Maravilha. Os oito filmes da secção levam-nos a um conjunto de geografias e de cartografias humanas que convidam ao sobressalto, mas também à mais pura das fruições. A extração mineira pinta de carvão os corpos de Viet and Nam, estreia no formato longa de Truong Minh Quý e nomes dos dois protagonistas de um filme que entretece, num deslumbre poético, a história de amor entre eles com o trauma de perda da guerra. Numa geografia oposta, La Pampa, do francês Antoine Chevrollier, é sobre amizade e lealdade, um cruel retrato de uma comunidade rural que é puro combustível de masculinidade e homofobia. Música e realizadora trans norte-americana, Theda Hammel assina e protagoniza uma das mais surpreendentes comédias deste ano, Stress Positions, onde os devaneios e as taras das personagens, encerradas num apartamento de Brooklyn durante o confinamento, garantem que tudo corra deliciosamente mal. Já Sem Coração, de Nara Normande e Tião, leva-nos a uma vila piscatória brasileira, cenário de encontro entre jovens de diferentes estratos sociais, numa delicada e violenta narrativa com uma qualidade quase documental. Mais quatro títulos completam esta secção, cujo prémio é patrocinado pela Levi’s, no valor de 1.000€.
A seleção da Competição de Documentários deste ano privilegia vidas raras e filmes que ora trabalham com a memória, ora apontam ao(s) devir(es). A ativista Paula Monteiro, a produtora da RTP Maria João Gama e a realizadora Renata Ferraz formam o júri encarregado de decidir qual dos oito filmes vence o prémio patrocinado pela RTP, pela aquisição dos direitos de exibição do filme, valorizado em 3.000€. Entre eles, destaque para: Avant-Drag!, de Fil Ieropoulos, que mostra a originalidade do transformismo na Grécia contemporânea através de um conjunto de artistas drag que desafiam normas, ícones e monolitismo cultural com a sua arte de protesto; Cyborg Generation, filme onde Miguel Morillo Vega acompanha o músico Kai Landre numa jornada que lhe permitirá ouvir a música das esferas e refletir sobre as consequências existenciais da condição ciborgue; Frammenti di un Percorso Amoroso, onde Chloé Barreau compila entrevistas, cartas e imagens de todas as pessoas que amou na vida num derradeiro gesto de compulsão amorosa; e La photo retrouvée, de Pierre Primetens, documentário que, com recurso a imagens de arquivo e voz off, ilustra a infância suprimida, a reconfiguração do lar e o islamismo forçado, entre outros golpes sofridos pelo seu realizador.
22 títulos compõem a Competição para Melhor Curta-metragem, de cujo júri fazem parte o diretor de casting Diogo Camões, a atriz e performer June João e a produtora Madalena Fragoso. A partir de uma vasta variedade de geografias chegam-nos expressões artísticas que nos falam de desejo, sítios, corpos, reparação, luto, visibilidade e pertença. James Cooper (The 5 O’Clock Chime), Angalis Field (Bust), John Greyson (Death Mask), Abdellah Taïa (Ne jamais s’arrêter de crier) ou Hao Zhou (Wouldn’t Make It Any Other Way) regressam ao Festival, mas abundam novos e excitantes nomes a descobrir. Em destaque este ano, entre todos eles, e a lutar pelo prémio da competição no valor de 500€ e patrocinado pela Contranatura, dois filmes portugueses que chegam a Lisboa após muito bem recebidas estreias internacionais: por um lado, Seu Nome Era Gisberta, documental animado, poderosa homenagem a Gisberta Salce e toda uma viragem estilística no percurso cinematográfico do realizador Sérgio Galvão Roxo; e, por outro lado, o esperado As Minhas Sensações São Tudo o que Tenho para Oferecer, que a realizadora Isadora Neves Marques apresentou na última edição do Festival de Cinema de Cannes.
Na Competição de Curtas-metragens de Escola Europeias “In My Shorts”, que será avaliada pelo mesmo júri e que conta com filmes de escolas como a ESCAC (Barcelona) e a FAMU (Praga), destaque para Cura Sana, da jovem Lucía G. Romero, obra de fatura deliciosa que tem conquistado audiências com a sua impecável receita à base de força cenográfica, drama social e atrizes em estado de graça; I Kiss Your Hand, Madame, onde o realizador Jeremy Luke Bolatag trabalha o registo documental a partir da proximidade com a sua protagonista, mulher trans na Hungria de Orbán que combate o medo com base no amor que marca a relação com o seu filho; e Dancing in the Light, exercício da estudante checa Julie Petríková a partir dos registos de vídeo de Nelson Sullivan (1948-1989) que recentemente ficaram disponíveis na Internet; uma oportunidade especial para descobrir esta figura semiesquecida da cena underground da Nova Iorque dos oitentas que profetizou a cultura dos ‘vloggers’. No total, dez filmes compõem esta secção.
Por último, a Competição Queer Art deste ano volta a explorar os limites das linguagens, géneros e narrativas cinematográficas. Entre os títulos mais surpreendentes da secção, Trans Memoria, documentário que mostra como o direito à autonomia sobre o corpo atravessa as pautas das pessoas trans, e The People’s Joker, paródia sobre o famoso personagem da DC Comics, que chega ao festival no preciso momento da estreia comercial do muito aguardado Joker: Folie à Deux, de Todd Phillips. Destaque ainda para três filmes brasileiros: após conquistar o grande prémio desta secção em 2021, Ricardo Alves Jr. regressa com Parque de Diversões, filme construído como uma noite de cruising e que, através de voyeurismos, exibicionismos e códigos fetichistas, aborda sexualidades múltiplas; Eros propõe um exercício performático a várias pessoas para que se filmem livremente durante noites passadas em motéis de sexo; e Sofia Foi, vencedor da Competição Primeiro Filme no FID Marseille de 2023, segue as deambulações da sua protagonista homónima numa trama fantasma, noturna, silenciosa e solitária. O júri encarregado de decidir qual dos oito filmes merece o Prémio patrocinado pela Variações no valor de 1.000€, é formado pela ilustradora e mediadora educativa Andreia Coutinho, pelo montador e argumentista Jorge Braz Santos e pelo artista plástico Pedro Gomes.
Nos debates, “Agora Somos Nós”, conta com Joana Mortágua e Maíra Freitas como convidadas e tratará sobre variados temas como direitos, representatividade e políticas públicas para a comunidade em Portugal. Já em “Gentrificação e População LGBTQI+”, que complementa a exibição do documentário Éviction, Rita Paulos da Casa Qui e Helder Bértolo da Opus Diversidades, são convidades a refletir sobre os processos de gentrificação que tomaram de assalto os centros urbanos da linha costeira do país. Haverá ainda lugar para um debate sobre “Resistência Queer”, um dos temas em foco este ano, onde são convidades Dan Sokoli, do Prishtina Queer Festival do Kosovo, e Bohdan Zhuk, do Sunny Bunny Queer Festival da Ucrânia, para, através das suas perspetivas geográficas e curatoriais, debater modos de produção, organização e expressão artística em determinados contextos políticos.
E ainda, uma Hard Night dedicada este ano ao realizador de Marselha Lazare Lazarus, uma exposição de fotografia, “Queer Spectrum“, pela mão de Dana Click, que se poderá ver no foyer do Cinema São Jorge, e duas performances: a primeira leva por título “La Carn” e será apresentada por Lluís Garau na Casa do Comum, e a segunda, em formato de palestra encenada, é “Palavras que me Servem“, uma proposta de André Tecedeiro e Laura Falésia na que nos farão refletir sobre o uso da linguagem inclusiva e sobre como, mesmo com as palavras conquistadas, as expectativas sociais continuam a moldar as nossas existências. E para celebrar depois dos filmes, várias festas, noite adentro: no Arroz Estúdios, no Purex Clube e na Casa do Comum.
O Queer Lisboa 28 tem um orçamento de 155.000€ e conta com os apoios da Câmara Municipal de Lisboa e do ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual, além de importantes parcerias como as estabelecidas com a Embaixada da Espanha, a Levi’s, a Contranatura, a Absolut e a FLAD, entre muitos outros.
Mais informações e programa completo do Queer Lisboa 28 em queerlisboa.pt