Há muito de autobiográfico nos livros de William Burroughs. As suas ânsias, paranoias, vícios, episódios reais e até o nome – William “Bill” Lee –, transpiram constantemente para a página. Isto é particularmente verdade em Junky (1953), Naked Lunch (1959) e Queer (1985) uma semi-trilogia temática, por assim dizer. Este último, adaptado no guião de Justin Kuritzkes (também responsável por Challengers, 2024), é revelador do desespero existencial de Burroughs. Um homem fragmentado e em fuga, em contradição permanente, dividido entre o que é e o que quer ser.
William Lee (Daniel Craig), é-nos apresentado, num encontro, a tentar perceber o porquê de o rapaz à sua frente ainda não ter acabado na sua cama. Pouco tempo depois vemo-lo ser escorraçado de uma mesa onde, após virar as costas, ouvimos os dois homens nela presentes dizer que “não se pode confiar num queer, não sabem manter nada no nível da amizade”. Pelo meio há mais um encontro sexual, mais transacional do que passional, que termina, novamente, com Lee sozinho num quarto. De copo em copo, de seringa em seringa e de corpo em corpo, vai passando sem conseguir ficar estacionário durante mais que umas horas, vítima dos seus incontroláveis impulsos. Lee vagueia pelas ruas da Cidade do México, às vezes acompanhado, mas permanentemente solitário, à procura de uma conexão. Entra em cena Eugene Allerton (Drew Starkey): jovem, belo, carismático. Lee vê-se imediatamente, e sem qualquer explicação aparente, atraído indomavelmente por Allerton.
Queer junta o erotismo e a melancolia de Call Me By Your Name (2016) com o místico e isotérico de Suspiria (2018) num filme que, mesmo com alguns elementos familiares, parece o único da sua espécie. A artificialidade de tudo o que rodeia Lee – os edifícios que parecem feitos de cartão, os exteriores iluminados toscamente e as vistas pela janela desenhadas numa tela – faz lembrar o ambiente criado por Cronenberg na sua adaptação de Naked Lunch em 1981, construindo um mundo para Lee que, tal como ele, faz apenas de conta que é verdadeiro. Com uma diferença relevante. O Lee de Naked Lunch procura “abandonar qualquer pensamento racional” enquanto o Lee de Queer desespera pela companhia do outro. Por “falar sem falar”.
Num dos jantares com Allerton, William expõe os seus pensamentos autodestrutivos e a sua crise existencial: a responsabilidade de se manter vivo contra a solidão que essa vida acarreta. Apesar de se apresentar como homossexual, Lee nunca parece tão confortável como aparenta nessa pele. A fachada do boémio bon vivant é transparente na atuação de Craig, deixando à vista um homem vulnerável e profundamente só. Esta solidão materializa-se na tela como se o mero corpo de Lee não fosse suficiente para conter a força daquele sentimento, escapando-se num sorriso doloroso de Daniel Craig após uma rejeição ou no seu espírito a tornar-se visível e fugir do seu estado corpóreo para tocar o homem que anseia acarinhar, num dos momentos mais inspirados que já assisti numa sala de cinema.
Estas contradições e subterfúgios vão além dos cenários cartonescos e das performances dos nossos protagonistas. Queer é um filme de peças desconjuntadas, que com o seu ar suado da América Latina dos anos ’50 e as suas personagens que aparentam ter fugido de um noir dos anos ’40, explode em needle drops anacrónicos e longuíssimos que incluem Prince, Nirvana ou New Order; tudo isto após o filme ser introduzido soturnamente ao som de Sinèad O’Connor. A banda sonora de Trent e Atticus Ross é mais delicada do que o habitual, e apesar dos seus drones e synths aparecerem a espaços para pontuar os momentos em que Guadagnino nos lembra que já fez um remake de Dario Argento e Bones and All (2021), é romântica, delicada e espaçosa, quase que num total oposto ao seu trabalho em Challengers. É uma presença etérea que envolve todo o universo de Queer num abraço lento e cheio de saudade.
O realizador italiano mantém o seu gosto de inspiração literária ao dividir o seu filme em capítulos, que em si carregam pouca narrativa no sentido mais clássico. Em vez disso vamos passando pelos inúmeros encontros entre Allerton e Lee. Uns em que o amor emerge descontrolado e no seguinte é o desconforto do primeiro que aparece, evitando os avanços angustiados de um Daniel Craig que parece sempre a meio caminho das lágrimas ou de uma falsa gargalhada. O que vemos é uma relação profundamente tóxica entre duas personagens aterradas com a ideia de não serem o que deveriam ser. Dois homens em negação: uma roça o patético, a passar de humilhação em humilhação por migalhas de atenção, o outro indiferente ao sofrimento que está a causar, mas assustado com a verdadeira natureza dos seus sentimentos. Queer não é uma história de amor. É uma sobre os efeitos perversos deste quando os seus intervenientes não sabem quem são.
Mesmo quando Queer entra no seu mais absurdo – que envolve uma viagem pela selva ao encontro de uma botanista peculiar com conhecimentos sobre uma substância que permite desenvolver poderes telepáticos –, o seu núcleo permanece intacto. É uma ode sobre a solidão masculina, o querer desgovernado do coração e a batalha eterna entre o que somos e o que queríamos ser. É um filme difícil de descrever e muitas vezes de compreender, mas as suas sensações são elementares, trazidas à vida através de um trabalho atrás das câmaras magistral e à altura do melhor trabalho da carreira de Daniel Craig. Tão longe ficámos dos galãs bem vestidos como James Bond e Benoit Blanc, em prol de uma performance vulnerável e dilacerante, cheia de pequenas nuances que aprofundam um homem de tal forma complexo, que foi necessária uma total orquestra de todas as ferramentas cinematográficas imagináveis para traduzir uma fração daquilo que este tem em si. Felizmente, estamos nas mãos de um Maestro, e Guadagnino eleva esta sinfonia ao magistral.
