Nos subúrbios de Conyers, Pensilvânia, duas famílias idílicas e tipicamente Americanas em costumes e crenças celebram o Dia de Ação de Graças, quando as respetivas filhas mais novas Anna Dover (Erin Gerasimovich) e Joy Birch (Kyla-Drew Simmons) desaparecem.
O irmão de Anna, Ralph (interpretado por Dylan Minnette, pré-13 Reasons Why [2017-2020]) desconfia imediatamente da caravana que estava estacionada em frente a uma casa vizinha e da pessoa que ele e a irmã de Joy, Eliza (Zoë Soul), tinham ouvido lá dentro. Pouco depois, a polícia, liderada pelo agente Loki (Jake Gyllenhaal), interceta o veículo e captura o condutor, Alex Jones (interpretado pelo eterno mestre do creep, Paul Dano), pondo em movimento uma série de acontecimentos que aumentam gradual e cirurgicamente a entropia do enredo, testando não só a atenção, como a perceção do espectador.
Prisoners foi escrito por Aaron Guzikowski e realizado por Denis Villeneuve na sua estreia em Hollywood e na língua inglesa – esta última partilhada com a produção canadiana Enemy, também protagonizada por Jake Gyllenhaal e lançada em 2013. É um filme que marca a carreira do cineasta quebequense enquanto momento de viragem duma escala mais doméstica, reduzida e independente, para um nível de produção mais ambicioso em colaboração com os grandes estúdios norte americanos e com recurso às maiores estrelas da indústria dos Estados Unidos. É o início do caminho que tornou Villeneuve num dos maiores nomes do cinema da atualidade. E com razão.
Falamos de um thriller policial que utiliza, até ao máximo potencial, todas as ferramentas que definem o género e o tornam tão popular. É um exemplo quase perfeito do espaço e da tradição cinemática que habita, e um dos marcos do neo-noir americano, empregando uma linguagem cinemática tradicionalmente noir para representar uma narrativa cheia de nós e mistérios, mas também cheia de comentários perspicazes sobre a vida suburbana Americana, graças, talvez, à perspetiva muito própria enquanto outsider próximodo canadiano Villeneuve.
A escuridão e palidez que consomem a fotografia de Prisoners pelas mãos experientes e inigualáveis de Roger Deakins, valendo-lhe uma nomeação aos prémios da Academia (a única do filme), refletem os tópicos perturbadores e pessimistas da história, mas também enchem aquela população, aparentemente pacata e marcadamente religiosa, de sombras, distorcendo os seus contornos e expondo a sua monstruosidade. Ninguém, nem as personagens que se pensam mais virtuosas, nomeadamente o pai revoltado de Anna, Keller (Hugh Jackman, numa das melhores prestações da sua carreira), está imune a esta onda niilista que se infiltra por cada fenda e buraco.
É precisamente a personagem de Keller que incorpora muitos dos temas do filme. Trata-se de um homem sobrevivencialista e devoto, que ouve gravações de rezas e sermões no carro; que mantém, na sua cave, mantimentos e ferramentas para uma eventual tragédia; e que ensina o seu filho mais velho a caçar e a sua filha de seis anos a usar um apito de emergência. Ainda assim, não consegue prevenir a maior calamidade que alguma vez poderia sofrer – o rapto da pessoa mais vulnerável que tinha sob a sua atenta supervisão. O desaparecimento de Anna simboliza o falhanço de toda a filosofia de vida de Keller, e leva-o ao desespero, apesar de ser o homem que supostamente estava preparado para qualquer eventualidade. A sua fé entra em conflito direto com as suas ações, mas este usa-a, ao invés, como escudo moral para as defender. Neste sentido, torna-se o oposto direto do verdadeiro culpado do rapto, que deixaremos por revelar para não estragar a surpresa.
Paralela à crise moral e psicológica de Keller está a investigação de Loki, inicialmente mais cerebral e ponderada, mas também suscetível à crescente desordem e desespero que permeiam todo o filme. Para quem procura o lado psicológico do thriller criminal, Prisoners entrega personagens ricas e complexas que habitam as zonas cinzentas entre o bem e o mal. Para quem, por outro lado, procura o desafio quebra-cabeçasda investigação, também ficará satisfeito, pois o ponto mais forte do filme talvez seja precisamente a forma como monta o seu mistério e posteriormente o desvenda, camada a camada.
O génio do argumento de Prisoners está na forma como divide e dispersa a nossa atenção, apresentando, aos poucos, vários suspeitos igualmente credíveis e incompletos, ao mesmo tempo que, como Hansel e Gretel dos irmãos Grimm deixaram migalhas de pão no chão para marcar o seu caminho, vai lançando detalhes e pistas que, sem que nos apercebamos, nos estão a levar diretamente ao culpado. Em filmes como este, torna-se difícil comentar a construção do whodunnit sem arruinar a experiência de o tentar decifrar pela primeira vez. Ainda assim, fica desde já a garantia de que Prisoners ganha mais charme ainda quando revisto, já com o pleno conhecimento de quem raptou as meninas, pois dá gosto ver o controlo pleno que Villeneuve e Guzikowski têm sobre a sua história.
Este é um filme essencial para os fãs deste género de cinema e para os fãs de grandes desempenhos, que certamente desfrutarão do trabalho deste elenco de luxo que conta com pesos-pesados como os já mencionados Jackman, Gyllenhaal, e Dano, mas também Terrence Howard, Maria Bello, Melissa Leo, David Dastmalchian e uma mal aproveitada Viola Davis. É ainda de visionamento obrigatório para quem procura conhecer melhor a obra de Villeneuve e conferir a forma como este se consegue adaptar aos mais variados géneros cinemáticos, mantendo a intenção e minúcia que definem todo o seu trabalho até à data.