Priscilla (2023)

de João Iria

Priscilla Presley, após o visionamento desta biopic, mencionou que procurou abstrair a sua pessoa desta película, como um membro comum da audiência curioso por experienciar esta longa-metragem, distante da sua realidade. Perante a sua conclusão, sentiu-se emocionada, consciente da sua primaveril idade, questionando: “Porquê eu? Porque estou aqui? Porque estou nesta limousine, a atravessar os portões de Graceland com o Elvis?”. Observar a nossa história através da sétima arte, exibida numa extensa tela, concebida por uma equipa de artistas, indivíduos fisicamente apartados da nossa experiência, deve transmitir uma estranha sensação de alienação, por vezes afetando e conjugando inéditas memórias, transformando-se e agregando-se numa conjunta secção de imagens mentais e visuais que interferem na nossa perceção da nossa vida, relações e da nossa própria identidade. Biopics conseguem aproximar-se da veracidade, separar-se completamente desta ou erguer uma ponte entre ambos os espaços, contudo é naturalmente impossível de constatar este género como um facto pois permanece uma criação artística audiovisual. Ainda assim, é precisamente essa sua natureza criativa que, ocasionalmente, oferece e revela uma perspetiva singular e desconhecida da nossa pessoa aos nossos olhos.

Baseado no livro de memórias, Elvis and Me (1985), escrito por Priscilla Presley e Sandra Harmon, Priscilla é a nova longa-metragem da celebrada cineasta Sofia Coppola que explora o trajeto de uma adolescente, Priscilla Beaulieu (Cailee Spaeny), pela auto-descoberta na sua relação com o rockstar, Elvis Presley (Jacob Elordi), durante um percurso com mais de uma década, iniciando com o momento em que conheceu a estrela, pontificado pela sua diferença de idade – ela, 14 anos; ele, 24 anos –, quando a icónica figura musical estava a prestar o seu serviço militar americano na Alemanha. “Ninth grade? You’re just a baby,” murmura o “Rei” para a jovem, confessando sentir-se com saudades de casa, estabelecendo de imediato uma conexão emocional, através da sua vulnerabilidade, com esta rapariga ainda no ensino básico, num evidente caso de grooming onde Elvis nutre Priscilla como uma planta a crescer ao seu ritmo e vontade, colocando grades ao seu redor para manter controlo e domínio na sua construção. Graceland, uma colossal prisão milionária de espaço aberto para a adolescente, como se ela própria pertencesse à mobília, onde o seu guarda permanece maioritariamente ausente. Esta relação de dimensões corporais entre o ser e o seu espaço reflete-se também na dupla de protagonistas, Elordi, de aproximadamente 2 metros, uma torre para Spaeny, com cerca de 150cm, contemplar, maravilhar e sonhar como uma princesa num conto de fadas, enfatizando o seu poder. Um detalhe de casting extraordinário, claramente fictício, cuja relevância reside no seu impacto visual e no seu significado metafórico dentro desta narrativa que revela o depois do “felizes para sempre”, quando a torre é consumida por musgo.

Jacob Elordi espanta como Elvis, recusando-se a entrar numa caricatura ou nos exageros típicos de comediantes e atores em posições similares que simplesmente se penteiam e adotam o sotaque do Foghorn Leghorn, o galo dos Looney Tunes. No seu corpo, esta figura destaca-se como um homem transtornado, todavia consciente do seu charme utilizando-o constantemente para o seu proveito, isento de limites emocionais, com o seu carisma enevoando a sua natureza instável e possessiva. É assustadoramente realista, perigosamente charmoso e preciso na imagem de Elvis como um homem incapaz de escapar da sua imagem de estrela de rock, influenciando agressivamente a sua vida privada. Elordi é simplesmente incrível, surpreendendo completamente, particularmente devido à sua proximidade temporal com outra performance grandiosa desta icónica celebridade.

No entanto, o genuíno choque está em Cailee Spaeny com possivelmente das melhores performances desta década, comunicando além de palavras, olhares ou expressões, habitando a jovem protagonista durante diversas idades, brilhantemente encaixando nestas diferentes fases com uma naturalidade impressionante e absurda, fruto também de uma excelente caraterização de maquilhagem e do guarda-roupa extraordinariamente magistral, a sua tenra idade recordada entre cenas dispendiosas num casino, mergulhada em festas, estendendo a sua mão para participar no rodeio de drogas providenciados à estrela, para o manterem a brilhar, apagando a inocência do sonho com a perversão da realidade. Spaeny partilha momentos absolutamente devastadores cujo impacto se sente propositadamente tardio, retendo as suas emoções, ideias e personalidade, retendo a sua pessoa em benefício de um ser maior do que a vida, em benefício do seu amor por essa figura. Intensamente apaixonada, Priscilla navega a sua jornada isolada num silêncio profundo, enraivecida pelas descobertas de amantes nos tabloids, insegura no inicial desinteresse sexual de Elvis, pacientemente aguardando pelo regresso de um homem que vive no palco e na melodia da estrada. É árduo interpretar uma personagem, neste caso uma verdadeira pessoa, num biopic cujo retrato principal é um arco-íris a preto e branco, indefinido, mas Spaeny capta brilhantemente esta impressão com uma honestidade digna da sua vitória no Festival de Veneza.

Priscilla é uma estranha criação, pois é acerca de uma pessoa em silêncio, um ser a viver na sombra de outro, algemada à narrativa de um indivíduo cuja presença domina o seu ambiente, a sua identidade e o seu crescimento, reduzindo a sua vida ao seu apelido, invés do seu primeiro nome. Natural, pois ela é “just a baby”, como o próprio Elvis reconhece, ainda incapaz de compreender a sua pessoa, apta para ser moldada por um homem divinizado pelo mundo inteiro. Um homem que também sofria uma relação abusiva com o seu manager, mantido nesta longa-metragem apenas através de telefonemas e como um vulto de controlo para o artista musical, similar a uma voz na sua cabeça. O cantor encara Priscilla, por vezes, como a sua única posse na vida, descartável e reciclável conforme os seus desejos presentes. Uma dor não justifica outra, principalmente para uma jovem de 14 anos, ainda numa fase de desenvolvimento, ajustando o seu corpo inteiro às palavras do “rei”.

Sofia Coppola mistura um ambiente de época com uma atmosfera contemporânea, transmitido na sua estética e banda sonora, realçando a relevância desta história do passado numa era presente dominada pela instabilidade de domínio e poder entre casais, principalmente com um número crescente de celebridades na internet. Ainda que o corpo musical de Elvis não participe nesta longa-metragem – o motivo sendo que o estado do artista recusou a sua utilização devido à sua representação negativa – uma impressão permanece da sua presença similar ao efeito Mandela, enaltecendo esta história sobre uma mulher a escapar a celebrada e famosa tóxica sombra para desvendar o seu próprio caminho. Inevitável ditar este facto previsível mas Sofia Coppola é uma mestre cinemática. A cineasta exibe visuais completamente espetaculares (surpreendentemente filmado em digital) na direção de fotografia, composição e blocking de personagens, construindo imagens semelhantes a polaroids como uma memória a ser recordada ao longo desta narrativa, e criando uma intimidade invasiva como se a audiência se apoderasse destas lembranças, agora detalhadas em frames físicos e texturados leves, todavia pesados nas nossas mãos.

A sua conclusão intencionalmente abrupta e anti-climática simplesmente acontece, evitando o drama exaltado e inserindo a verdadeira dor nas palavras escondidas e na contradição dos sentimentos que invadem o coração e a alma no seu destroço. A consciência de que o amor perdura apesar da dor infringir marcas físicas e mentais. Após a sua exibição, Priscilla mencionou: “Ele foi o amor da minha vida.” e esta sua paixão permanece uma realidade atual para si, ainda que estranho para os espectadores desta longa-metragem, perante os seus créditos finais. Isento de melodrama cinemático, presenteando um conto melancólico de objetificação e desejo e de uma identidade eclipsada por uma figura lunar, Sofia Coppola compõe Priscilla com compaixão na sua experiência, compreendendo a complexa infinitude de emoções humanas no amor, recusando-se a julgar Priscilla por esta presente paixão. Somos muito mais complicados do que queremos acreditar e impossíveis de resumir em palavras ou dividir num conceito binário de bom ou mau. A realizadora recorda a importância do cinema como um retrato de empatia, contudo, consciente que o sangue derramado nunca é recuperado, o nosso corpo simplesmente aprende a regenerar.

4.5/5
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