Já Wim Wenders apregoava que todo o filme é político. Com particular ênfase para os que pretendem não o ser, gostava ele ainda de sempre acrescentar para tirar qualquer dúvida de onde estava a sua verdade. Outros descartam-se de qualquer subtileza e usam os seus galardões bem visíveis para todos verem. É neste grupo de obras que Portugueses, de Vicente Alves do Ó, orgulhosamente se coloca gritando a altos brados os ensinamentos de Abril, na revolução que mudou o panorama político de Portugal – “Liberdade Sempre. Fascismo nunca mais”.
Portugueses é um mosaico de “still life” do povo português antes, durante e após a revolução dos cravos, a sua vida, as suas dificuldades e os seus problemas diários. O que torna o filme único, na sua abordagem, é o uso de 13 temas musicais, icónicos da cultura portuguesa como estandarte da sua realidade.
Numa altura política igualmente relevante para o país, com a extrema-direita cada vez mais representada no parlamento, revela-se certeiro temporalmente mas não tão afinado na maneira de a combater. A escolha de dar a voz a exactamente 50 histórias pessoais do cidadão comum, raramente visto nos projectos associados ao 25 de Abril, não é inocente mas diluí também o impacto de cada uma destas histórias. Não há tempo para nos ligarmos a cada uma das personagens e o ambiente é de constantes introduções e despedidas, não favorecendo a proximidade que pretende emular. Existe uma obsessão em colocar o dedo na ferida, dos erros do passado e do perigo de voltar a esse tempo, que todos parecem ter esquecido, mas a verdade é que o fascismo adaptou-se e já não é o daqueles tempos. Mais do que bradar e gritar a plenos pulmões – “LIBERDADE” e apelar à revolução de sangue, a solução está em EDUCAR para a igualdade e fraternidade, e não do cada um por si, COMBATER a desinformação e a propagação de “fake news”, com informação fidedigna e imparcial e eliminar o principal combustível do fascismo – a propagação do medo.
A escolha de 13 canções, nem sempre exclusivamente de intervenção mas relevantes da cultura portuguesa, permitem, no entanto, a conexão tão desejada com o espectador. Mais do que mostrar os sentimentos das personagens, são elas que revelam a ideia mais bela do argumento – do poder transformador da arte. Mantendo as melodias icónicas cria-se um sentimento de glorificação da música, onde a simplicidade dos arranjos impera. A verdadeira estrela são, no entanto, as palavras de tantos, e enormes, poetas portugueses. Palavras que, através da ironia e do subterfúgio, muitas vezes escaparam à censura, e transmitiram, sem barreiras, a mensagem a quem tinha de chegar – o povo. Existem alguns momentos maiores como a reinvenção de Tourada, nas palavras de Ary dos Santos, quase despida de instrumentos, mas também alguns inexplicáveis e com pouco sentido como o uso de Conquistador, dos Da Vinci, para retratar o exílio dos fascistas do país, pós 25 de Abril. A letra glorifica o país nos feitos do passado, tal e qual a ditadura o fazia, mas essa constante busca pelo literal retira a própria essência da música de intervenção, a subtileza de dizer a verdade, por meias palavras.
Nem sempre os seus intérpretes são músicos profissionais mas a intenção e paixão, por detrás da mensagem, ofusca sempre qualquer desafinação e mostra a qualidade dos actores por detrás de cada personagem principal. Nos secundários essa qualidade torna-se sofrível, em certos momentos, o que distraí e cria momentos cómicos involuntários. Mais uma situação que poderia ter sido resolvida com a redução no número de história e de personagens.
A escolha de fotografia a preto e branco surge acertada e evidencia o talento de Hugo Azevedo, que trabalha bem o equilíbrio entre a sombra e a luz, e potencia a atmosfera pesada pedida pelo argumento. A introdução de cor, que acontece exclusivamente nos momentos musicais, é uma clara metáfora sobre a importância da arte. Surge, durante o filme, como o único alívio da monocromia cinzenta da vivência monótona do dia-a-dia destes portugueses, e é mais uma decisão que passa despercebida ao início mas que cresce de importância e relevância com o desenrolar da narrativa.
Vicente Alves do Ó mostra-nos, neste Portugueses, o seu manifesto da revolução de Abril. Um musical sobre os anónimos cidadãos que, embora esquecidos pela história, foram essenciais para nos trazer a liberdade tão desejada. É na glorificação da arte, na força da palavra e no eclético e talentoso elenco que se revela mais promissor, mas torna-se vítima inevitável das inúmeras ideias, realidades e sentimentos que pretende transmitir, com a diluição das ideias, repetição de clichês, e o afastamento emocional do espectador perante tantas vinhetas de “still life” made in Portugal.