O bullying é uma palavra na ordem do dia, com cada vez mais atenção mediática nos meios de comunicação social. Não é, no entanto, algo recente e sim algo constante na existência humana. Poderíamos definir o termo como uma forma de intimidação e violência sistemática de uma pessoa ou grupo sobre um indivíduo, percepcionado como mais fraco ou vulnerável. Em tempos recentes é associado ao contexto escolar mas é um fenómeno que extravasa as paredes da escola e faz parte de qualquer sociedade moderna. Os mais fortes atormentam os que eles veem como fracos, desde a pré-história, e assim continuará até ao fim dos tempos. É a natureza humana, no seu modo mais grotesco, que Carlota Pereda nos quer mostrar neste Cerdita (em português, Porquinha).
Baseado numa curta-metragem, com o mesmo nome e da mesma realizadora Carlota Pereda, Porquinha acompanha a vida de Sara (Laura Galán, a repetir a personagem da curta-metragem), uma rapariga com excesso de peso a sofrer de bullying constante pelas raparigas da aldeia, durante o período de férias. Sara acaba por ser testemunha de um crime, sobre as raparigas que a atormentavam, criando uma decisão difícil para a personagem – Contar à polícia o que sabe ou proteger o desconhecido que a salvou?
Desde o início é estabelecida a principal razão deste filme funcionar e chama-se Laura Galán, exemplo de um casting perfeito. Para além de uma fisicalidade e expressividade acima da média, a atriz consegue dar a Sara uma dualidade emocional e uma constante aura de incerteza sobre o seu papel na narrativa e em qual dos lados habita, o bom ou o mau. Galán ultrapassa essa dicotomia habitual nos “heróis” deste tipo de cinema e mostra, cada vez mais, facetas da sua personalidade à medida que a história se desenrola. Ora é o desespero com o trauma que sofre, a ânsia de ser aceite, o despertar da sexualidade e do desejo mas também o alívio de ver as suas agressoras castigadas; o silêncio perante o crime ou a raiva perante a família, na pessoa da mãe. Uma adolescente, de carne e osso, como há muito não se via no cinema e Laura Galán é o veículo ideal para a revelar ao espectador, em toda a sua glória. Destaque ainda para a decisão inteligente de manter o vilão no anonimato, reforçando, assim, a sua imprevisibilidade e o factor medo no espectador, e ampliando o impacto que a violência reflecte no final sanguinário.
Todos os actores secundários são competentes a cumprir as várias facetas presentes no bullying. Desde o instigador, aos acólitos e uma trupe de indiferentes que deixam Sara à sua sorte, por preservação própria ou por receio de sofrer represálias – Cada qual com a sua culpa, retratada no argumento de forma exímia. Isto prova o engenho de Carlota Pereda ao criar um argumento que mantém vivo o clima de terror constante mas não se coíbe de infundir a história com um forte comentário social ao impacto do bullying na sociedade, pervertendo indivíduos ao ponto de se tornarem indiferentes ao sofrimento humano e perpetuando a continuação do fenómeno nos nossos filhos. A realizadora não se fica por aqui e infunde o filme com uma multitude de géneros desde a comédia (bem negra) até a um thriller criminal bem delineado (com algumas opções pouco realistas) mas o seu coração está no género do terror com a exploração do gore, terror psicológico, slasher e do body horror na vertente da vítima, Sara, e da sua percepção do próprio corpo.
A desilusão vem na forma como nos mostra este interior rural espanhol (também ele um protagonista mas mal aproveitado) e os seus actores. Com excepção de alguns planos de grande impacto (mais perto do final) pouco fica na memória visual para além da competência em contar a história que quer; e consegue-o em grande parte, mas falta rodear-se de alguém que consiga revelar o seu ponto de vista de um modo mais único e artístico.
Carlota Pereda confirma, com esta estreia auspiciosa, a entrada no grupo restrito das grandes realizadoras de terror mundial e cria em Sara, interpretada magistralmente por Laura Gállan, uma inesperada heroína dos tempos modernos. É necessário estar atento aos seus próximos passos no mundo da 7ª arte.