Despertar em plena liberdade, isenta da ilógica moralidade de uma sociedade intencionada em dominar a mente e o corpo dos seus habitantes, como um ser trajado numa honestidade absoluta, sem vergonha na sua pele, dos seus prazeres carnais ou da sua felicidade abstrata. She’s alive. She is alive! Pois viver, verdadeiramente viver, é possuir autonomia e independência e, ainda assim, desfrutar da conexão sentimental com o nosso mundo e das nossas relações humanas. Pobres criaturas que acreditam em valores pré-estabelecidos, no seu auto engrandecimento, na inocência como uma pureza superior e na autodestruição/obliteração alheia como o decisivo trajeto para a evolução pessoal, que persistem em permanecer no status-quo, independentemente da sua miséria ou tristeza.
Despojada de memórias ou de um passado, proferindo os sons aleatórios dos seus bizarros animais de estimação e as palavras dos seus ainda mais bizarros familiares humanos, Bella Baxter (Emma Stone) acorda num singular e excêntrico universo como uma rejuvenescida mulher que nasceu, praticamente, através do seu corpo, somente assistida por um Deus deformado, aliás o seu inédito guardião parental, Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe) – referido apenas como God pela protagonista – cujo rosto assemelha, ironicamente, com o da criatura criada por Dr. Frankenstein, um homem literalmente movido por ciência e as experiências desumanas do seu pai. Bella segue o seu próprio passo, não sincronizado, pelo soalho de uma grandiosa mansão, estimulada por uma abundante curiosidade em aprofundar o seu conhecimento e descobrir mais acerca deste espaço e da sua invulgar pessoa, principalmente após o êxtase de um orgasmo – “Why do people not just do this all the time?” exclama Bella para o seu companheiro nesta jornada erótica, Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um fuckboy da era vitoriana que proclama ser uma sobeja criatura sexual.
A nova criação do estrondoso Yorgos Lanthimos, Poor Things, uma adaptação do romance de Alasdair Gray, Poor Things: Episodes from the Early Life of Archibald McCandless M.D., Scottish Public Health Officer (1992), é uma divertida peça metaforicamente opulenta acerca de autonomia feminina, com inusitados diálogos maioritariamente expositivos, comuns nas obras do realizador, que encaixam sublimemente nesta viagem de uma protagonista a desvendar a sua identidade, desprovida de filtros vocais, e aprendendo a viver conforme os seus desejos e pensamentos. O excelente argumento de Tony McNamara explora a natureza da sexualidade, poder, dinheiro e escolha associada à aspiração masculina de controlo, seja maliciosa – como o apetite lascivo de um homem atraído pela ingenuidade desta personagem – ou benevolente – como o seu noivo cornudo, Max McCandles (Ramy Youssef), cuja atração surge principalmente pelo fascínio, ou como a possessiva proteção do seu guia parental, God. São diversos temas extensivos percorridos que resultam numa estrutura de 5 atos que pode sentir-se cansativa ou exaustiva para uma audiência geral, até particularmente repetitiva na sua conclusão, contudo, Lanthimos preserva um pacing hipnotizante que impede essa sensação, contido nos seus primorosos visuais, na edição de Yorgos Mavropsaridis e na performance magistral de Emma Stone.
A atriz destaca-se como a estrela principal num elenco incrivelmente virtuoso submetendo carne e alma inteiramente à sua protagonista, colorindo o seu cabelo com um potente negrume que contrasta com a sua tez clara, sobressaindo como uma boneca de porcelana que adquire independência; a sua pele frágil resistente ao sofrimento, incapaz de ser quebrada. Stone desloca o seu passo como num disforme ballet luxuosamente sórdido, encantando na sua sinceridade frontal entusiástica e curiosa que prevalece sempre como genuína. Esta performance excecional é acompanhada pela esdrúxula e cativante presença de Mark Ruffalo, igualmente prodigioso na sua patética personagem desesperada por atenção e validação ocultando este com um véu de masculinidade tecido por pretensões sexualmente gratificantes, que escolhe interpretar este homem como uma espécie de Geppetto tarado em negação do seu coração de marioneta, insistindo no domínio de articulação sobre os seus próprios fios.
O elenco secundário prevalece através de distinções físicas únicas, atribuídas pelo guarda-roupa, pela caracterização da maquilhagem e pelo seu profundo talento. Dafoe com uma tristeza no seu olhar que contradiz a aceitação do seu corpo; Youssef e Charmichael com uma compaixão e vulnerabilidade camuflada, respetivamente, pela paixão cientifica e uma visão cínica do planeta, refletindo a temática da ilusão de liberdade nestas figuras sempre cobertas com inseguranças e receios. As surpreendentes participações pequenas mas grandiosas de Margaret Qualley e Christopher Abbott roubam gargalhadas e o desconforto do público, providenciando camadas narrativas memoráveis apesar do seu diminuto tempo no ecrã.
Uma produção que compreende absolutamente o propósito do cinema como uma forma de expressão artística dramática, usufruindo de todos os seus elementos em beneficio da sua narrativa. Desde um majestoso e espetacular guarda-roupa, cujo design de Holly Waddington reflete o crescimento de Bella como personagem, inicialmente infantil e desajustado até atingir uma forma exata, permanecendo invulgarmente original e unicamente seu no escopo desta comunidade, ao design de produção de James Price e Shona Heath, criando cenários expressionistas monumentais e gloriosos que mesclam uma realidade fantasiosa com uma visão futurista do passado, similar à experiência de habitar num sonho, refletindo a visão desta aventurosa protagonista, à banda sonora de Jerskin Fendrix, a sua estreia no cinema, que introduz esta ingénua individua com toques melódicos desorganizados típicos de uma criança a aprender a comunicar, encontrando eventualmente o seu consistente ritmo extravagante, confiante no seu tom musical, até à sua direção de fotografia impecavelmente dirigida por Robbie Ryan mergulhando na divisão entre um preto e branco gótico estilo fábula e a intensidade das suas deslumbrantes cores que parecem fugir do seu espaço apropriado, como aquarelas a manchar o restante desenho num livro para colorir, e nos habituais ângulos abertos da filmografia de Lanthimos, revelando a grandiosidade expansiva deste universo com uma infinitude de magia por explorar e o seu simultâneo desconforto através da lente fisheye como uma sociedade a constringir os seus cidadãos nas normas do comportamento correto, desobedecidos por Bella Baxter. É pura e simplesmente brilhante. Não existe outra forma de descrever a aptidão desta obra cinemática senão como absolutamente brilhante, definindo Yorgos Lanthimos como um artista maníaco e um dos melhores cineastas atuais, consciente da relevância de todos os elementos técnicos de uma produção audiovisual no desenvolvimento da sua história.
Poor Things é um “formidable” conto de fadas absurdamente perverso e estranhamente hilariante acerca da odisseia emocional e física de uma mulher pela autodescoberta e o impacto do mundo que nos rodeia e dos seus seres no desenvolvimento da nossa identidade. Sinceramente, estas palavras parecem insignificantes perante a majestosa criatividade e delicioso engenho desta longa-metragem que exige ser vivenciada; uma obra completamente livre no reino da imaginação, que inspira e expira fundo, eletrificada pela sua equipa de artistas e ressuscitada pelos aplausos da audiência, recebendo vida além do seu argumento, da sua produção e da tela. A sétima arte está viva. It’s alive!
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