Pieces of a Woman tem a marca de Martin Scorsese como produtor executivo, tem uma cena histórica em cinema, um desenvolvimento vulgar, e um final apaziguador que nos ajuda a lidar melhor com as contradições que tudo isto nos provoca.
Um casal prepara-se para o momento mais importante das suas vidas, o nascimento da sua filha, programado para acontecer em casa. Martha (Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf) têm uma relação afetuosa e desejam muito esta criança. Quando as complicações no parto começam a suceder-se, a rutura com quem eram nasce naquela noite.
É difícil falar deste filme e não começar pelo momento que marca não só as personagens, mas sem dúvida que todos nós. Na primeira meia hora do filme depois de uma breve introdução de personagens e suas relações entre si, partimos numa experiência única que é realizada numa sequência enorme com mais de 20 minutos num só take, que expõe inúmeros detalhes e nos prende como só a vida nos pode prender, porque é isso que é retratado, vida a nascer. Sean e Eva (Molly Parker), que aparece em substituição de última hora da médica que acompanhou toda a gravidez, tal como aconteceria num parto real, apoiam no campo emocional e clínico respetivamente, ficando o trabalho pesado para a grávida, a soberba Vanessa Kirby. Outro protagonista desta cena histórica é Benjamin Loeb, diretor de fotografia que é responsável por filmar todos os momentos, captar todas as reações e movimentações, integrando-nos na cena, e conduzindo as nossas emoções até saltarem das nossas bocas abertas para as nossas mãos. É seguramente uma cena para ser falada durante muitos anos, lembrada, e representa o cordão umbilical com Pieces of a Woman, garantindo que quer gostemos mais ou menos do filme, nunca nos esqueceremos dele. Tal como 1917 (2019) e Birdman (2014) por exemplo, esta opção estilística de prolongar os takes é repetida (com muito menor extensão) algumas vezes, mas jamais conseguiria ter o impacto e conquistar a relevância que a cena do parto atinge.
Se pensarmos no filme em 3 atos, podemos considerar que o 2º (e mais longo) é o menos forte, já que o 1º é extraordinário e o 3º oferece a resolução que a história precisava para lhe dar um sentido. Tudo o que acontece depois da meia hora inicial e antes da meia hora final é uma degradação rápida no tempo como consequência de uma experiência traumática, fazendo com que inclusive percamos alguma empatia por certas personagens. É aceitável, tendo em conta que é esperado que cada personagem/pessoa tenha uma reação perante algo que as marcará para sempre. Porém é inegável que o contraste pode provocar-nos algum conflito, porque efetivamente todas as consequências perfazem todos os clichés em dramas, e são expostas todas aos poucos como pano de fundo, sem nunca permitir que uma ganhe uma preponderância que nos cative. No fundo o maior adversário de Pieces of a Woman é o seu maior trunfo, o clímax está invertido, ocorre no início e não no fim, o que molda as nossas expetativas para o que se segue.
No entanto acho uma vitória que apesar disso, quando parece que inevitavelmente vamos considerar o filme uma ligeira desilusão somos resgatados para o enredo, quando o foco volta totalmente para a cicatrização mental de Martha no último capítulo. E o propósito para toda esta ideia encontra-se onde se deve encontrar, escusando a necessidade de um novo clímax. Noutros elementos que complementam uma longa-metragem, há a destacar a composição delicada que respeita os momentos mais dramáticos, não procurando dizer-nos onde chorar, ou prestar mais atenção, está em serviço da história e da melancolia presente nas personagens.
Quer olhemos para os pontos altos ou baixos do filme quem sobressai sempre é Vanessa Kirby. Cada olhar faz-se ouvir mais do que todos os monólogos e diálogos do resto do elenco. Por vezes parecia que queriam todos um momento de atenção pela dor que também sentiam, mas o nosso interesse vive na angústia de sabermos o que o tempo fará a Martha, se a deixará estagnada, se a empurrará para um poço sem fundo, ou se a fará capaz de se reerguer, de se reconstruir, de seguir em frente.
A expressão inglesa para ator secundário é supporting role, e neste caso funciona melhor para descrever o elenco. Todos são um supporting role, esticando os braços para sustentar no ar uma Vanessa Kirby que faz o papel de uma vida, que certamente lhe valerá uma merecida nomeação aos Oscares como Melhor Atriz Principal.
Este é um drama puro, não há fusão com qualquer outro género, portanto devemos esperar uma atmosfera pesada e sombria. Nem todos os pedaços do filme encaixam. Mas numa história de reconstrução pessoal, talvez faça sentido que tenhamos acesso aos pedaços que se deitam fora, deixando a imagem final incompleta, mas disponível a ser preenchida por nós. Há situações em que mais importante do que ter as mãos no céu, é garantir que quando a vida nos empurra e faz cair não ficamos no chão, e nos levantamos, dando pequenos passos em frente mesmo que ainda a cambalear.