Comer paz ao pequeno-almoço
A questão que se impõe é: alguém pediu uma série sobre Peacemaker? Quase ninguém, mas a verdade é que se tornou numa daquelas coisas que uma pessoa nem sabe que precisava, por ter uma presença que não chama a atenção nem pede remorsos em canto algum.
Peacemaker (2022-) é uma série original da HBO Max, baseada em personagens mais desconhecidas da DC Comics, e que tem como protagonista… nada mais e nada menos que Peacemaker – ou pelo seu alter-ego, Chris Smith – interpretado por John Cena. Esta personagem – introduzida pela primeira vez em The Suicide Squad (2021) – é um autoproclamado “super-herói” que diz lutar pela paz por qualquer meio necessário, sem olhar a quem tem de matar para o conseguir. Apesar desta visão, é mais uma vez contratado pelo governo para travar uma ameaça alienígena, com a ajuda de um grupo de agentes que colocam à prova as suas ideologias.
Sendo escrito e realizado por James Gunn, autor da saga Guardians of the Galaxy (2014/2017) e do já referido The Suicide Squad (2021), podemos limpar da conversa que o fator entretenimento não falha. Começando pelo genérico da série, que merece ser referenciado pois tem como objetivo tornar-se numa introdução onde ninguém carregue no botão skip intro. Se é bem-sucedido ou não nesta tarefa, é uma questão individual, mas basta vê-lo para perceber o tom da série. Composto pelas personagens a dançarem coreografias estapafúrdias e até ordinárias, mas com uma cara séria e ao ritmo de “Do Ya Wanna Taste It” dos Wig Wam, fica estabelecido a fórmula usada por Gunn para a própria série. Se soa a algo familiar, é porque Gunn apresentou em The Suicide Squad (2021), um enredo similar com um grupo de desajustados da sociedade, pouco reconhecidos pelo público, com liberdade para a violência e para originalidade na interpretação das personagens.
James Gunn prova mais uma vez ser um dos melhores na escrita para super-heróis. Volta a ter como centro emocional a exploração da força da amizade e do quanto conseguimos evoluir se nos unirmos a um grupo que nos compreenda e também nos desafie. No entanto, Gunn aproveita a liberdade de conteúdo mais maduro (sem as algemas da Disney) para introduzir ideias como trauma familiar ou introspeção e evolução pessoal, e mesmo a nível social consegue nadar em alguns campos relevantes como patriotismo, xenofobia, sexismo, fake news e basicamente quase todos os “ismos” que sejam extremos. Fá-lo sem qualquer tipo de remorsos, não escolhendo lados do que desconstrói ou ridiculariza. Todos estes temas são atacados tanto a nível emocional como humorístico. Os traumas familiares e os problemas sociais são gozados lado a lado, da mesma forma que o protagonista e o vilão são ambos humilhados por uma escrita despreocupada com o politicamente correto. Não existe um lado bom e mau nas personagens, existem heróis que tomam ações de vilão e vilões que tomam ações de herói. Duvidamos dos nossos protagonistas e sentimos pelos nossos antagonistas… Exceto algumas personagens extremistas, como o pai de Peacemaker. Esse é só para desprezar.
Peacemaker é uma série surpreendentemente emocional, seja com o seu humor ou sem ele. Tem peso nos seus enredos – principais ou secundários – e leva-os sempre a bom porto. Até mesmo algumas piadas recorrentes e que se arrastam por alguns episódios, culminam em lados emocionais e íntimos das personagens, conseguindo ir buscar esse lado humano de situações tão fantásticas.
Boa comédia provém não só de boas piadas, mas também de um sentido de naturalidade que o humor tem na vida humana. Está intrínseco na essência do ser humano que o humor é uma reação e abordagem a problemas, tal como chorar ou gritar. Com este ponto de partida, Gunn consegue criar comédia muito natural e consistente com o tom da série, que ajuda a florescer as próprias personagens e as suas relações, fugindo à praga de humor cringe que tem assolado o conteúdo de super-heróis ultimamente. Muita desta proeza vem do alcance que as piadas têm, desde comédia infantil, sexual e escatológica, até piadas “inteligentes” sobre problemas sociais com humor físico e rotineiro, numa dança dinâmica entre todas. Alguns momentos abordam assuntos tão delicados e sem qualquer tipo de medo, que ao invés de nos provocarem uma gargalhada, provocam uma reação de desconforto, uma mão na testa e a proferição do nome de uma ou duas santidades religiosas. Tudo isto são pontos positivos numa salada humorística que ainda consegue ter tempo para ser “meta” e gozar com os estereótipos de super-heróis e ficção científica.
As personagens mais engraçadas não são aquelas que tentam ter piada, mas aquelas que se levam demasiado a sério e por isso o valor cómico está na sua existência – Peacemaker é exatamente isso. Vaidoso, mas ao mesmo tempo ignorante da sua própria estupidez, é alguém que tenta à força toda integrar-se com os que o rodeiam, mas com aquela atitude egocêntrica para tentar parecer cool. Neste ponto, John Cena é o absoluto stand-out num elenco já muito bom. Consegue ser autoconsciente da sua persona, tanto na parte física como no seu estatuto de herói de ação da WWE. Utiliza todas estas ideias pré concebidas e faz de Peacemaker uma personagem estupidamente infantil e mentalmente duvidosa, surpreendendo através de um alcance emocional e cómico que a maioria da audiência desconhecia. Segundo as entrevistas e making-off já existentes, o próprio John Cena improvisou muitas das suas cenas, principalmente de humor, e provou ser um ator capaz de segurar protagonismo numa série self aware e satírica. Nesta analogia também se encaixa a personagem de Vigilante (Freddie Stroma) – autoproclamado melhor amigo de Peacemaker – que é levada ao extremo da sua ingenuidade ao mergulhar numa sociopatia que se revela ternurenta, perturbadora, mas ao mesmo tempo hilariante. Uma ovação a Freddie Stroma por conseguir segurar uma personagem tão estapafúrdia e conflituosa num elenco por si só já tão caótico.
Mergulhada numa banda sonora de Rock americano dos anos 70 e 80, que invoca o patriotismo do protagonista e o ambiente mais underground de Gunn, esta é uma das melhores séries de super-heróis dos últimos tempos. Apesar de alguns problemas de ritmo nos episódios intermédios e uma linguagem visual desinspirada, Peacemaker prova ser algo fresco e com uma identidade própria, que não exige demasiado do espetador na sua pequena fornada de 8 episódios. Contém um final muito arrojado (apenas para uma piada) e não pede uma segunda temporada, apesar de já existir confirmação de continuação. Será novamente escrita e realizada por James Gunn, mas mantenho o receio na possibilidade de estragarem algo tão único. No fundo, esta série tem John Cena a dançar de cuecas, que mais querem ver?