Parthenope (2024)

de Matilde Garrido

Segundo a lenda grega, a sereia Partenope, incapaz de seduzir Ulisses, lançou-se ao mar, e as ondas levaram o seu corpo inerte até à costa de Nápoles, onde a sua presença ecoaria para sempre, fundindo-se com a alma da cidade. Esse mito, frequentemente lido como uma tragédia da beleza que, por si só, não basta, ressurge no cinema de Paolo Sorrentino sob uma nova lente. Fiel ao seu fascínio pelo esplendor e pela decadência, o realizador reinterpreta Partenope na sua protagonista contemporânea: uma mulher de beleza estonteante, aprisionada pelo próprio magnetismo. Mais do que um nome ou uma personagem, Parthenope torna-se um conceito, uma experiência estética meticulosamente construída, mas que, no fim, se perde na contemplação narcísica da sua própria superfície.

Parthenope (Celeste Dalla Porta) desde a sua juventude é doirada na costa de Nápoles dos anos ’50 e é nesta cidade que acompanhamos as diferentes formas que a sua vida vai assumindo até à sua maturidade (uma versão da protagonista interpretada por Stefania Sandrelli). Pouco tempo é preciso para percebermos como a sua beleza é traçada como um destino inevitável. Os homens à sua volta não a veem como uma mulher de verdade, mas como um reflexo dos seus próprios desejos e frustrações. Parthenope desliza pela vida sem nunca parecer inteiramente dona do seu caminho; move-se entre festas opulentas e praias desertas, entre o fascínio dos outros e a sua própria apatia. Há um romance aqui e ali, há a promessa de uma carreira que nunca se materializa, há momentos de prazer e de melancolia—mas tudo é efémero, porque Parthenope nunca deixa de ser um mito aos olhos do mundo. O tempo avança, e com ele, a tensão entre a sua identidade e a projeção que os outros fazem dela. Mas será que alguma vez existiu para além do olhar alheio?

Se Parthenope tem um mérito inegável, ele reside na fotografia de Daria D’Antonio, capaz de proporcionar momento de puro deslumbramento visual. Nápoles não é apenas o cenário, mas uma extensão da protagonista: as suas ruas sinuosas e o mar infinito refletem a beleza enigmática de Parthenope, como se ambos fossem feitos da mesma matéria. Cada onda parece beijar-lhe a pele, cada brisa desliza sobre o seu rosto num gesto de adoração. Há planos longos, movimentos de câmara sensuais, diálogos esculpidos para soarem filosóficos. O cineasta, como sempre, coreografa o espetáculo da existência com uma reverência quase religiosa. No entanto, essa devoção torna-se um problema: o filme não a questiona, apenas a exalta. Parthenope flutua pela tela como uma miragem, uma entidade hipnótica, mas nunca uma mulher de carne e osso.

A crítica ao olhar masculino está presente, mas de forma paradoxal. Sorrentino parece consciente do perigo de transformar Parthenope num mero objeto de desejo, mas, ao tentar subvertê-lo, acaba por reafirmá-lo. A grande verdade é que a personagem é um enigma porque o filme se recusa a dar-lhe agência real. A sua inteligência é mencionada, mas raramente demonstrada. Até a própria atuação de Porta, ainda que reveladora de talento, parece confinada a um papel que nunca a desafia para além do seu magnetismo físico. Os homens que a orbitam – um professor rabugento que a admira intelectualmente (Silvio Orlando), um escritor decadente que vê nela uma musa (Gary Oldman), um irmão que nutre sentimentos ambíguos (Daniele Rienzo) – não são personagens, mas reflexos do impacto da sua beleza. O tempo é um inimigo silencioso, mas mais do que envelhecer, o que ameaça Parthenope é a transitoriedade do fascínio que exerce sobre os outros.

Apesar da sua riqueza visual, o filme tropeça na sua própria solenidade. O ritmo lânguido, a insistência na grandiosidade dos gestos e na aura quase sacral da beleza acabam por anestesiar a experiência emocional. Sorrentino confunde mistério com ausência de profundidade, e a sua artificialidade onírica impede qualquer ligação genuína com a personagem principal. Nápoles, com o seu mar infinito; mas o filme parece hesitante em mergulhar—contenta-se em molhar os pés na superfície do fascínio estético. Quando vemos o peso dos anos em Parthenope, há um esforço para nos comover com a inexorabilidade do tempo, mas a construção da personagem nunca nos permitiu investir nela o suficiente para que essa transformação tenha verdadeiro impacto.

A grande ironia de Parthenope é que, apesar da sua ambição de ser uma reflexão sobre a beleza e o seu poder, acaba por ser um exercício autoindulgente que não consegue ir além do seu próprio fascínio pelo sublime. O que poderia ser uma meditação poética sobre a juventude, o desejo e a passagem do tempo transforma-se num filme que parece estar eternamente a posar para um quadro renascentista. No fim, Sorrentino parece tão encantado com a sua criação que se esquece de a deixar viver. A sereia canta, mas a sua voz não chega até nós.

2/5
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