Já se passaram uns meses, a poeira já assentou, as palmadinhas nas costas necessárias para descansar os magnatas de Hollywood já foram dadas e todos foram para casa nessa noite a sentirem-se inclusivos, feministas q.b. e uns belos gladiadores pela luta contra a desigualdade no meio cinematográfico. Esta é a capacidade que os Oscars têm de encher peitos de pessoas que, por norma, se regem pelo mesmo pêndulo moral que o Ricardo Salgado.
Maior prova disso é que, até eu, um cético em recuperação – e melhor pessoa que o Ricardo Salgado –, olhei para a entrega de prémios e pensei “bolas, que lufada de ar fresco”. O que, em bom abono da verdade, não é necessariamente falso, dado que, pela primeira, tivemos duas mulheres nomeadas para Melhor Realização e uma vencedora, tivemos também duas mulheres e uma vencedora nos prémios atribuídos aos argumentos e um filme realizado por uma mulher nomeado para Melhor Filme Internacional. É isto. Foi por isto que andaram (e andei) todos felizes durante aquelas semanas.
E aqui podemos encontrar algo maravilhoso que a escrita oferece. Porque isto no abstrato parece incrível, um grande passo em frente para a igualdade e coiso e tal…mas depois põe-se por escrito e percebemos que esta lista não consegue ultrapassar 196 caracteres, mesmo para alguém que abusa das palavras como o autor deste artigo. Os feitos cinematográficos almejados por mulheres em 2021 podiam ser resumidos em pouco mais de tweet e meio de acordo com a Academia.
Ainda assim, há também alguns iluminados que ficam totalmente indiferentes a este tipo de acontecimento. Uso a palavra “iluminados” não de forma totalmente pejorativa porque há um princípio de razão nos seus argumentos. A ideia é que não devemos querer saber de quem realiza – no que toca a género, orientação sexual, raça, etc. – nem isso deve ter qualquer influência ao quantificar o nosso nível de alegria quando estes ganham ou perdem um prémio pois, no final de contas, aquilo que conta é única e exclusivamente o mérito artístico (se esse é ou não mesurável, é tema para outro artigo). Isto seria a mais pura e inequívoca das verdades, no entanto, é uma ideia que comete duas falácias.
A primeira é que admite que os filmes existem num vácuo em que as vivências pessoais dos seus intervenientes não têm impacto direto na forma como abordam as próprias histórias que contam, como se a estas apenas estivessem ligadas as palavras na página e a imagem presente no frame. Isto retira da equação as particularidades das experiências de cada autor, particularidades essas que têm sido demonstradas e celebradas de forma muito pouco proporcional ao longo dos mais de 120 anos de cinema que tem mostrada uma longa e aborrecida tendência de contar história sobre e feitas por homens brancos heterossexuais. Portanto sim, o background cultural e pessoal de cada artista é uma parte essencial do seu trabalho e na forma como olhamos para o mesmo.
Outra falácia, e essa consideravelmente mais aparente, é a ideia utópica de que a indústria do cinema – com Hollywood à cabeça – é uma amostra de meritocracia. Este é também o argumento mais comum em caixas de comentários de redes sociais quando se sussurra sequer a ideia de “quotas de paridade”. Olhemos então para alguns dados que, embora apenas permitam ver a ponta do icebergue, deixam, no mínimo, identificar uma tendência. Na lista dos 100 filmes com maior box-office da história apenas um dele é exclusivamente realizado por uma mulher. No que toca aos 93 anos de Academia o que não falta são dados gritantes sobre a sub-representação de género mas bons exemplos são o facto de serem apenas sete as mulheres nomeadas para Melhor Realização das quais duas acabaram por vencer, existir unicamente uma mulher nomeada ao prémio de Melhor Fotografia e serem somente quatro as que venceram o prémio de Melhor Banda Sonora. A estes podemos adicionar as problemáticas da desigualdade salarial, desigualdade de oportunidades ou o ocultar do papel fundamental da mulher nos primórdios do cinema e daquilo que este é hoje como Helen O’Hara tão bem explica em Women vs Hollywood, porque exemplos para provar esta tese que a meritocracia é uma ilusão, infelizmente, não são escassos.
E é exatamente por tudo isto que não podemos olhar para aquilo que aconteceu durante esta época de prémios como algo mais que uma pequena anomalia no gigantesco mecanismo das grandes produtoras em vez do maior passo para a humanidade desde que o Kubrick encenou a aterragem na Lua. Os prémios são por defeito, coisas parvas e que fazem pouco sentido, mas é perfeitamente imbecil achar que estes não têm qualquer impacto não só na própria indústria, mas também no próprio tecido cultural a nível global, para o melhor e para o pior.
Portanto se calhar coloquemo-nos entre os iluminados e os feministas de bancada. Continuemos a esperar, a apoiar e a trabalhar por mais anomalias destas para que estas, em vez de pequenos acasos que acontecem uma vez a cada geração, se tornem recorrentes e sintomáticos de uma sociedade que tanto precisa de mudar e tanto precisa que as artes, como em tantas outras revoluções culturais, sejam a vanguarda deste movimento.