Os Óscares e as Audiências: #PresentAll23

de Rafael Félix

Os Óscares são sempre um assunto particularmente aborrecido para se falar por variadíssimas razões, mas possivelmente aquela que resume toda a panóplia de problemas que os prémios da Academia têm é simples: os Óscares são inerentemente parvos.

Porém, ainda que saibamos o quão gigantescamente parvos são, como seria qualquer cerimónia de prémios que valorize uma peça de arte em detrimento de outra, não são algo que possamos ignorar, porque no meio de toda a sua gargantuesca parvoíce, há virtudes inegáveis a qualquer pessoa com alguma réstia de bom-senso (disclaimer: nem sempre fui uma pessoa com algum bom-senso, mas vivemos e aprendemos).

Dizer que os Óscares não interessam é esquecer o impacto que uma vitória ou uma mera nomeação pode ter no futuro dos artistas e no financiamento oferecido a estes quando podem ser designados como “Academy Nominated”. É esquecer que para muitos, os Óscares chamam a atenção para filmes que possivelmente fogem da bolha mainstream e podem introduzir a uma imensidão de novas possibilidades a partir desse primeiro passo proporcionado pela imensa máquina de marketing da Academia (veja-se o impacto que Parasite (2019) teve na visibilidade do cinema sul-coreano). E é também esquecer que os Óscares não são provas da validação de gostos perante certos e determinados filmes, são sim (ou deveriam ser), um sinal de reconhecimento dos artistas, feito pelos seus pares, sobre um trabalho no qual estes investiram horas e horas da sua vida para criar um documentário, compor uma banda sonora ou montar os ditos filmes.

As vitórias e os próprios nomeados são sempre questionáveis e não há forma de contornamos o elefante na sala: são as campanhas de milhões, dos estúdios e produtoras, que permitem que os filmes sejam sequer equacionados para entrarem nas cogitações das nomeações. Os Óscares são, e sempre foram, um sistema que pouco está associado ao mérito artístico e muito mais associado ao capital e ao mercado. No entanto, há anomalias estatísticas que permitem a filmes como Parasite (2019) ou Drive My Car (2021) de aparecer por lá; raras vezes é certo, mas que continuam a oferecer a esperança de que a própria Academia, com o passar do tempo e a contínua renovação dos seus painéis, possa aprender com os erros do passado e a tornar-se algo que se pareça, um pouco mais, como uma celebração dos artistas e não apenas uma campanha económica que culmine em audiências chegado a Março.

A verdade é que este ano, como já se tinha temido em 2019, o pânico do capital ganhou, resultando num retrocesso imenso, não só para a Academia, como para a indústria e os artistas em geral.

Não é segredo para ninguém que a cerimónia tem vindo a perder audiências de ano para ano, tendo 2021 atingido um mínimo histórico com aproximadamente 10 milhões de espetadores, quando em 2020 tinha registado cerca de 23 milhões e, mais tragicamente, em 2000 o mesmo indicador rondava os 46 milhões.

Portanto em 20 anos os Óscares perderam mais de três quartos do seu público. As razões para isto iriam requerer outro tipo de análise, tempo e dados, mas podemos assumir a perda de influência do mercado cinematográfico perante, por exemplo, a televisão, e os ritmos de vida mais acelerados e menos coniventes com conteúdo cultural mais complexo ou assumir que há algo no próprio formato da cerimónia que não está bem e não se liga a esta nova geração de espetadores.

Provavelmente estas razões e outras estarão articuladas para explicar isto, mas parece-me que a última apresentada acima é aquela que fará mais sentido. É notório que nos últimos anos a Academia renovou uma tendência que já havia mostrado em outros períodos da sua história, ao tentar constantemente chegar a novos públicos ou estar na vanguarda de uma qualquer trend social, apenas resultando num esforço que na melhor das hipóteses é respeitável, mas inútil, e na esmagadora maioria das vezes, enche o ecrã de um cringe capaz de fazer tremer a espinha da pessoa menos cínica à face da Terra, com números musicais intermináveis e edgy que têm a aura de serem escritos por aquele tio bêbado que acha que é super “pafrentex” mas na verdade é tão ou mais repugnante que o resto das pessoas à mesa que só querem acabar de comer a sua baba de camelo; discursos enormes sobre a necessidade de igualdade e eliminação de abusos cometidos na indústria mas proferidos por pessoas que esperaram pelo melhor momento mediático para se referir a estas situações abjeta, profanando todo o ambiente em redor com um fedor intolerável a hipocrisia e cinismo; teorizar-se categorias como “Filme Mais Popular” com todos os problemas que algo tão vago acarta, numa tentativa desesperada de apelar a um público que nunca teve, nem nunca teria, interesse na cerimónia por intermédio neste tipo de paternalismo e condescendência da Academia.

Existe então uma dessincronização entre os Óscares e o público geral. Agora uma coisa é certa, não é devido ao facto de se premiar categorias como Montagem, Banda Sonora, Cenários, Maquilhagem, Som e as três categorias destinadas a curtas, em direto que se perdeu os espetadores ao longo dos últimos 20 anos. O argumento da Academia é que isto servirá para melhorar a cerimónia, dando espaço a conteúdo que irá apelar mais às audiências e celebrando a 7ª Arte de diferentes formas.

Irá sacrificar-se a celebração das pessoas que tornam estes filmes possíveis com a justificação que o farão de forma a poderem celebrar os filmes que estes tornaram possíveis. É bizarro.

Estará a retirar-se o momento mais alto da carreira de qualquer artista, principalmente nas categorias mencionadas, que são as que estão mais acessíveis a pessoas provenientes de situações de menor privilégio e a trabalhar em áreas da indústria muito menos valorizadas apesar do seu caráter essencial – veja-se a quantidade de vezes absurda que a Academia confunde uma boa maquilhagem com uma boa atuação ou a forma como uma montagem inteligente tornou Don’t Look Up (2021) mais tolerável do que aquilo que o guião deveria permitir –, em prol de um público que nem sequer está minimamente interessado na indústria, na gala, ou sequer filmes. É a procura desesperada por um público que não existe que irá alienar o pouco público que ainda assiste – ironicamente ou não – a 3 horas de Hollywood a falar do quão extraordinária e importante ela própria é enquanto Amy Schumer faz umas piadas meio brejeiras em que a punchline é o seu órgão genital, apenas porque reconhece que estes prémios, por muito que nos façam enervar na sua gigante irrelevância, são relevantes.

Este público resiliente é aquele que em 2019, depois do mesmo tipo de decisão ter sido tomado em relação a algumas outras categorias, impediu este atentado ao trabalho das pessoas que ali se encontravam nomeadas e que agora mais uma vez se uniu num repúdio veemente a esta atitude por parte da organização dos Óscares, contando com as vozes de artistas, críticos, produtores e associações como a American Editors Society ou a Motion Picture Sound Editors –que já antes tinha tido razões de queixa quando viu as categorias de Montagem de Som e Mistura de Som fundidas –, todos eles fazendo menção ao absurdo que é ignorar a celebração de aspetos tão imensamente importantes para o cinema de forma a privilegiar conteúdos que sejam mais “economicamente viáveis”.

Mas ao que parece, desta vez a decisão é irrevogável. As engrenagens parecem já estar em alta rotação e não há protesto que vá valer em relação à cerimónia de 2022. Resta-nos esperar que seja feita justiça pelos artistas que trabalharam uma vida inteira, com todos os sacrifícios pessoais e familiares que isso acarreta, para verem o seu momento de reconhecimento retirado cinicamente pelas mesmas pessoas que diziam que o seu trabalho é que torna possível os filmes que tanto fazem para mudar as nossas vidas desde há mais de 120 anos. Resta-nos manter a esperança, que inutilmente mantemos ano após ano, que a Academia finalmente irá aprender com os seus inúmeros erros. Erros esses, que pelo andar da carruagem, se tornaram irreversíveis num futuro não muito distante.

Este ano foi um gigante recuo. Esperemos pelos resultados.

#PresentAll23

0 comentário
7

Related News

Deixa Um Comentário