O intemporal preso no seu tempo.
Começar por descrever e analisar um filme como este pode ser considerado uma tarefa hercúlea, talvez até fútil. É o tipo de cinema que não tem outra forma de ser transmitido a não ser que seja experienciado em primeira pessoa. Tudo isto se deve a muitos fatores: o seu estatuto icónico, o título quase indiscutível de um dos melhores de sempre, a sua imensa mistura de culturas, a sua eterna ligação a um género que está inevitavelmente preso a uma época, etc.
Tal como é conhecido por muitos, esta obra de Sergio Leone tem a sua origem num género, pode-se dizer, imortalizado pelo próprio: spaghetti western. No entanto, o que Leone faz com este filme não é apenas criar mais uma aventura de foras-da-lei no oeste, mas sim subverter algumas das ideias pré-estabelecidas no género e até expectativas em relação aos anteriores filmes que tinha realizado no mesmo molde. É que Leone, em muitos dos seus trabalhos sobre o oeste, teve grande influência de obras de Akira Kurosawa, que por sua vez inspirou-se nos clássicos westerns americanos de John Ford, por exemplo. Porém, Leone acabou por inverter os clássicos clichés de Hollywood e a corrente do cinema comercial lá produzido. O cineasta sempre teve maior interesse em contar histórias mais realistas e substituir o clássico herói de coração puro e vilão de coração podre, por personagens mais profundas, complexas e humanas. E um dos filmes onde isso é mais aparente, é este.
Once Upon A Time In The West é um filme mais lento, mais negro e, consecutivamente, mais contemplativo do que os antecessores. Debruça-se sobre a história americana de uma forma sentimental e aborda temas que existiam nos filmes anteriores, como a morte e o impacto de uma vida, com maior delicadeza e introspecção. Ao invés dos nativos serem os maus-da-fita, aqui o maior perigo provém da expansão industrial americana e o inevitável ruir do velho e, admitamos, obsoleto oeste. Desta forma, todas as personagens sejam elas protagonistas ou antagonistas (sim, continuam a existir), são pintadas de forma minimamente idêntica: não de branco e preto separadamente, mas de cinzento e até de todas as outras cores necessárias. A linha entre o bem e o mal não é, de todo, definida e cada personagem tem a sua agenda, os seus desejos e os seus medos. Tudo isto é estabelecido desde a primeira cena, numa das melhores introduções que o cinema já viu. Ao contrário da sua anterior Dollars Trilogy (1964, 1965, 1966), que continha em cada filme uma sequência inicial animada, bombástica e espalhafatosa, espelhando as enormes aventuras que estávamos prestes a vivenciar, Leone optou por iniciar este filme com oito minutos de espera e de uma penosa criação de tensão. Apenas vemos um grupo de bandidos à espera de um comboio, a lidar com problemas do quotidiano, mas é o suficiente para Leone nos falar de violência e humanidade no que eram os maiores clichés do género.
Claro está que uma das atrações ao filme, principalmente na altura do seu lançamento, foi o seu incrível e reconhecido elenco de estrelas. Charles Bronson entrega uma performance subtil, silenciosa e durona. Com poucas falas mas muitos olhares, consegue trabalhar lindamente tanto com o mais íntimo como com o mais bombástico que Leone lhe fornece. Claudia Cardinale e Jason Robards vivem papéis carismáticos e completos, como a “donzela” (por falta de melhor expressão) e o sidekick respetivamente, subvertendo os arquétipos das personagens, sem nunca lhes faltarem à essência. No entanto, o destaque tem de ir para Henry Fonda: a personificação da bondade e dos valores americanos na época. A escolha deste ator, sempre associado ao herói incorruptível, como vilão sem escrúpulos foi um choque que se provou infalível. Fonda inverte o seu típico ar de bom menino e fornece-nos um antagonista complexo, frágil, mas completamente impiedoso.
Sergio Leone consegue, apenas neste filme, mostrar o porquê de ser um dos maiores cineastas de sempre. A mestria com que trabalha todas as áreas que fazem esta arte única, é inspiradora. A fotografia do filme, captada por Tonino Delli Colli, é sublime. A forma como consegue trabalhar a escala de planos, desde os close-ups até aos gerais, é estonteante. Graças a este entendimento da arte visual e um sentido arrojado de explorar o momento, somos capazes de ser levados desde o mais íntimo dos olhos de uma personagem ao deslumbramento épico de uma paisagem avassaladora e apenas possível de captar sem uso de green screens. A montagem, a cargo de Nino Baragli, pode e deve ser explorada por todos os cinéfilos que querem aprender como fazer cinema. O elaborar de um ritmo próprio, sempre adequado à cena, faz-nos sentir que o corte nunca poderia estar noutro local senão o que foi escolhido. Religiosamente não poderia deixar de mencionar Ennio Morricone e a sua infindável magia musical. A banda sonora é criada com uma delicadeza e leveza que não prescindem da grandeza dos westerns. Toda a temática de contemplar algo tão fantasioso é sentida nas melodias que acompanham cada personagem e nos temas que as fundem para nos guiar neste ambiente rico e vivo. Com tudo isto, Leone cria um filme que fala através do audiovisual. Ao invés de nos maçar com exposição verbal dos personagens para sabermos como o enredo se desenrola, somos apresentados com as emoções de cada personagem praticamente apenas através do som e da imagem, ou seja, da linguagem única do cinema.
Por todas estas razões (e mais algumas…), este filme é intemporal. Apesar do enredo, o cenário e as situações serem muito específicas ao tempo que retrata, a forma como este filme aborda os sentimentos humanos de forma tão cinematográfica leva a que se imortalize aos olhos de quem o aprecie, seja em que época for. Conseguimos até poetizar alguns dos “erros” que apresenta, como a dobragem das falas que poucas vezes está sincronizada com a imagem, ou o óbvio contraste entre luz prática e os projetores escondidos por trás das câmaras. Mas talvez, por todas estas peculiaridades, este filme e muitos outros da época estarão para sempre presos no seu tempo, apesar de serem intemporais. Nós iremos sempre falar deles, mas nunca os poderemos replicar, seja pela específica qualidade da imagem ou do som ou pela relevância que tiveram na sua altura. Estas obras são como um avô com quem adoramos sentar-nos e não nos cansamos de ouvir as suas histórias por horas a fio.