Pôr tudo em pratos limpos parece descrever na perfeição a mais recente obra de Paul Schrader. Quando a vida nos troca as voltas é natural reflectir sobre as decisões tomadas no passado e, com o avançar da idade, parecem ser cada vez mais estes momentos que nos pesam na mente. Paul Schrader já circula pelo planeta Terra há 78 anos e no capítulo final da sua vida reflecte sobre memória, legado e qual é realmente o nosso papel no destino que a vida nos reserva. Este é Oh, Canada, o mais recente filme do realizador.
Leonard Fife (Richard Gere & Jacob Elordi) é um conceituado realizador de cinema a braços com uma doença incurável. Quando Malcom (Michael Imperioli) e Diana (Victoria Hill), antigos alunos de Leonard, o convidam para participar num documentário sobre a sua carreira, ele vê um caminho bem diferente. A última oportunidade de mostrar o seu verdadeiro eu, perante os que ama e o mundo.
Algo parece mais pessoal nesta história como se Schrader se confundisse com este Leonard Fife, desde logo por nos colocar nos bastidores de uma filmagem, com o trabalho antes de começar uma rodagem. A câmara é virada para o espectador como em jeito de nos colocar, também a nós, no centro desta narrativa. Trata-se da filmagem de um documentário que parece ter um objectivo para Malcom e Diana mas que Leonard transforma numa confissão das suas transgressões passadas. A religião é outro dos temas sempre subjacentes a qualquer filme de Schrader, mas aqui não há absolvição ou condenação que se vislumbre.
O argumento de Paul Schrader, baseado num livro de Russell Banks, é mais um na sua profícua colaboração e, após a morte de Banks, a ultima oportunidade de ver como ambos se ligam tão bem. Após a trilogia composta por First Reformed (2017), The Card Counter (2021) e Master Gardener (2022), este Oh, Canada centra-se também ele sobre uma personagem central, mas onde não se opta por uma narrativa linear ou um caminho pré-definido. A fragmentação propositada da narrativa, das personagens e das situações que recria da vida de Leonard, existem num limbo constante de incerteza. A realidade e a ficção são dois lados concorrentes na psique de Leonard e são constantemente postos em causa tanto pela equipa de filmagem como pela mulher.
Também o passado e o presente estão em cheque no argumento, com Richard Gere a interpretar Leonard no presente e Jacob Elordi a encarna-lo no passado e onde se mistura, muitas vezes, qual dos actores está no passado e qual está no presente. No início é clara a confusão no espectador, e em algumas situações chega a ser constrangedor, e mesmo embaraçoso, nem sempre pela ocorrência em si mas pelos sentimentos que desperta das nossas próprias decisões do passado e na maneira como representa a fragilidade da memória, sujeita a mutações constantes. Tudo sentimentos aos quais sou sempre parcial e que elevam a escrita inteligente de Schrader, baseada no livro de Banks, a um patamar elevadíssimo de qualidade.
Richard Gere é a estrela mais cintilante desta constelação, exímio no modo como alterna entre diferentes Leonards, muitas vezes na mesma cena. De um arrogante homem despido de compaixão, para um velho confuso e assustado, muitas vezes apenas com uma mudança no olhar ou com subtis alterações da linguagem corporal, é algo deveras impressionante de ver. A riqueza da sua personagem é reforçada ainda pela presença constante da sua voz como narrador, descrevendo o tempo como algo mutável de acordo com a sua vontade e urgência. Parece habitar o presente com um pé assente no passado e outro a cair no abismo do futuro, a um passo do oblívio. Não é uma decisão fruto da culpa, pelos seus pecados, mas do amor que sente pela sua esposa Emma, interpretada por Uma Thurman, num papel pequeno mas sempre muito emocional. Uma visão do amor raramente abordada em filme, pois nem sempre é bonito de ver ou fácil de suportar. Jacob Elordi está também a um bom nível, mas a sua performance de um homem a desbravar terreno e incerto do seu papel no mundo não tem tanto espaço de manobra, como Gere, para brilhar.
É natural que num filme de Paul Schrader seja dada uma maior atenção ao argumento e à palavra escrita e Oh, Canada mantém a tradição. No entanto existem ideias inspiradas que necessitam de ser mencionadas. O ambiente soturno, a meia-luz, do local de filmagens do documentário assinalando a angústia ou as belíssimas cenas a preto e branco que se parecem associar a momentos de grande culpa para Leonard. A beleza e a culpa competindo entre o magnífico jogo de luz e sombras e o “exorcismo dos demónios” da personagem principal. Obviamente isto cria um mosaico estranho de diferentes estilos ao qual ainda se junta o ambiente idílico dos anos ’60, reminiscente de Douglas Sirk, durante o período da sua vida na Virgínia ou a luz ofuscante de algumas sequências claramente criadas na mente da personagem de Gere. O brilhantismo, no entanto, só acontece quando a edição brinca e sobrepõe muitos destes diferentes estilos através do ecrã de um monitor, numa janela entreaberta onde espreita o passado ou em “portais” que parecem conjurar para viajar no tempo e no espaço. Talvez o único grande ponto contra todas as opções tomadas é não saber quando usar o silêncio e recorrer, como muleta, à voz-off quando as imagens falam sempre muito mais por si só.
Oh, Canada mostra uma clara viragem em estilo na obra de Schrader, ciente do aproximar do seu capítulo final, mas sem perder os valores que o definem e o respeito pelas suas personagens, doa a quem doer. Nem sempre acessível devido aos temas duros, à estrutura ramificada a nível espacial e temporal e à personagem central divisiva nas suas acções, mas sempre verdadeiro com as emoções que transmite. Leonard Fife poderá ser uma personagem fictícia, mas Richard Gere torna-o real na maneira como invoca raiva e vulnerabilidade de forma tão brilhante, muitas vezes na mesma cena. A não perder.