O Vento Assobiando nas Gruas (2024)

de Pedro Ginja

Uma mulher idosa caminha junto à ria Formosa apoiada sobre uma bengala. Está vestida com uma camisa de dormir e parece perdida, desorientada. Mais tarde sabemos que é Regina (Ana Zanatti), avó da nossa personagem principal Milene, interpretada por Rita Cabaço, que acaba por ser encontrada morta na antiga fábrica de conservas da família. Milene é uma jovem que se vê de repente sozinha, após a morte da sua única companhia. Após o funeral, Milene decide ir ao local onde morreu a avó e descobre que lá habita a família Mata, originária de Cabo Verde. Em pleno ambiente de partilhas da extensa herança da avó, as pretensões dos seus familiares esbarram contra a bonita ligação que se forma entre Milene e esta família, que todos vêem como uma clara ameaça ao seu futuro.

A clássica história de como o dinheiro muda as pessoas e as suas alianças. Cedo se percebe que a maior razão para ver O Vento Assobiando nas Gruas é Rita Cabaço. As razões para isso são inúmeras mas a principal é a maneira como retrata o amor de um ponto de vista raramente visto no cinema actual. Apesar da sua clara inexperiência em relações amorosas, devido ao seu isolamento no seu mundo anterior, há uma sinceridade inocente difícil de resistir para Antonino (Milton Lopes) e para o espectador. Aliás o facto de Milene ser uma pessoa vulnerável cria no espectador um dilema moral pois Antonino não partilha os seus problemas mas Rita Cabaço acaba por o minimizar em grande parte com a ternura de que reveste a sua Milene. Aliás a pletora de emoções que a sua personagem percorre no argumento é uma viagem por si só. Temos alegria, tristeza, raiva, felicidade, angústia, surpresa, confusão, o afecto e a confiança – todas as emoções humanas – e Rita Cabaço fá-lo em meros 93 minutos. As irmãs Gininha (Carla Maciel) e Ângela (Beatriz Batarda) parecem Yin e Yang, uma acolhedora e outra fria mas ambas calculistas e manipuladoras. São, aliás, as únicas que têm tempo (e cenas suficientes) para criar algo real. Muitos outros não têm essa sorte pelos mais diversos motivos, seja o tempo para João Lagarto e Ruben Garcia ou pela falta de cuidado no argumento para o talentoso Romeu Runa, aqui reduzido a um clichê de um marido abusador e racista. Ainda o reveste de uma frieza assinalável mas a qualidade dos diálogos não ajudam de todo. Mas o maior crime é a falta de atenção dada ao casting da família Mata. Milton Lopes, como Antonino, tem o tempo como interesse amoroso mas nunca sai da sombra de Rita Cabaço e o seu range deixa muito a desejar principalmente nas cenas mais emocionais. Os restantes mal têm tempo de saírem do papel de meros extras ou de espectadores no desenrolar da trama. Há um cuidado especial em dar à língua crioula o espaço que merece no seio da família Mata, o que alivia o pouco cuidado referido anteriormente noutras situações. Referência ainda a Dino D’Santiago, no seu primeiro papel como actor, e que surge numa cena lindíssima a harmonizar uma música com a sua família, mas é em sentido inverso, noutras situações, constrangedor quando não está escudado por detrás do seu porto de abrigo – a música.

Infelizmente o desequilíbrio espalha-se para outras partes da adaptação do romance de Lídia Jorge, publicado em 2002, perdendo, e muito, a sua faceta de abordar questões sociais e políticas, como o racismo, intolerância e xenofobia que surge diminuído, em grande medida, face ao lado romântico da história. Natural esta opção pois o livro original é bastante extenso (538 páginas na versão original) e ambienta-se na década de 90, tempo fértil de intolerância face à doença mental e ao racismo, muito enraizado na sociedade, e ainda refém das memórias do tempo colonial. Perde esse lado forte de uma luta entre o bem e o mal – ainda visível em algumas cenas difíceis de assistir – anestesiando a dor de Milene para poupar o espectador ao seu sofrimento. Não há também a transposição do ritmo lento do romance de Lídia Jorge e a pressa do argumento em fechar todos os pontos da história acaba por perder, no processo, a natureza contemplativa da obra da autora. O final do filme surge, por isso, desproporcional e sem sentido face ao trauma imposto a Milene apesar da beleza inegável do seu plano final.

A união musical entre o mundo fantasioso da mente de Milene, assente no seu gosto por pop dos anos 80, sempre a altos berros em casa, contrasta com as canções cabo-verdianas ouvidas pela família Mata e essa união de culturas na realidade pessoal de Milene é bonita de ver, principalmente por quase sempre surgir separadas no universo cinematográfico português. A música parece extravasar o seu papel habitual de suporte da narrativa e surge aqui como uma extensão de Milene e da ligação que cria com o mundo ao ouvi-la. Ora como espelho das suas emoções ora como escudo protector do mundo que a rodeia. Existem diversos momentos belíssimos, a explorar este mundo interior de Milene, mas depois diálogos infelizes ou interpretações duvidosas retiram-nos desse ambiente de maravilhamento imposto pelas escolhas de Rita Cabaço.

Jeanne Waltz, no seu regresso às salas de cinema, mostra-nos a universalidade do amor, a dimensão do preconceito racial e da doença mental no final do século passado e o enorme talento de Rita Cabaço mas acaba por perder, nas entrelinhas, a natureza contemplativa e o equilíbrio na dicotomia Bem Vs Mal da obra de Lídia Jorge. Um dos raros casos em que um maior tempo de duração poderia ter limado estas arestas e criado um filme mais harmonioso.

2.5/5
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