O jogo do bicho foi criado no final do Séc. XIX pelo Barão João Drummond, com o objectivo de atrair mais pessoas ao Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. O jogo consistia, nessa altura, numa figura de um animal impressa no bilhete do zoológico, entre 25 possibilidades, e da qual cada apostador escolhia o favorito do dia. Quem tivesse o animal vencedor no seu bilhete, ganhava um prémio em dinheiro. Mais tarde foi adicionada, à figura do animal, uma série numérica de lotaria quando o jogo se tornou popular, e começou a ser jogado fora do zoológico. Continua até aos dias de hoje, a ser um dos jogos de aposta mais populares apesar de ser ilegal segundo a lei brasileira.
O Último Animal explora os meandros ilegais associados a esse famoso jogo de apostas, através da história de Casimiro Alves (Joaquim de Almeida), um emigrante português conhecido nas ruas por Dr. Ciro, responsável pela massificação desse jogo ilegal. Mas a sua influência criminosa não se fica por aqui, e alarga-se ao negócio do tráfico de droga e de armas da cidade que o adoptou, o Rio de Janeiro. No meio desta guerra aberta está Alex (Duran Fulton Brown), um corretor financeiro, responsável pela lavagem de dinheiro do império de Ciro; Didi (Junior Vieira) um jovem inteligente, recém-licenciado em contabilidade, com a esperança de conseguir uma vida melhor fora da favela; e Paulinha (Gabriela Loran), a filha ilegítima de Ciro, dançarina principal da escola de samba em busca de fama e de uma nova carreira na música. Conseguirão eles sobreviver ao “jogo do bicho” contra um dos maiores criminosos da sua cidade maravilhosa?
Leonel Vieira é um dos realizadores de cinema português comercialmente mais bem-sucedidos, e contra factos não há argumentos. No seu mais recente filme, após um interregno de 6 anos, adapta uma história baseada em factos verídicos passada no Brasil num dos bairros mais pobres do Rio de Janeiro. O argumento opta por uma estrutura não linear, com constantes saltos temporais, e sobre um dos temas mais prevalentes na sua filmografia, o policial. Escrito em parceria entre o realizador, Ernesto Solis (Boliviano) e Leonardo Gudel (Brasileiro), conseguem unir o universo português, latino-americano e brasileiro, mas nota-se a falta de igual conhecimento de causa para as falas em inglês. Aliás, os diálogos são o maior ponto de contenção do filme com um acumular de clichês e frases feitas, principalmente na língua inglesa. A isto não ajuda a decisão de optar pela voz-off de Didi para conduzir a narrativa, que se torna repetitiva e demasiado explicativa do que se passa, como se os argumentistas tivessem medo que o espectador não conseguisse acompanhar a história. E nesse departamento, com uma clássica luta de David vs Golias nada justifica essa decisão.
O herói é claramente Didi, interpretado por Júnior Vieira, com o arco de progressão mais interessante e complexo da história. Isso deve-se ao tempo dado à personagem e a interpretação sólida do actor. Gabriela Loran, como Paulinha, impressiona pelo range emocional e pelo carisma enorme. O mesmo se aplica a Dhu Moraes no pequeno papel de mãe de Didi, que com tantas emoções com tão pouco diálogo só pode revelar um talento nato. Joaquim de Almeida é inevitável, claro, com uma actuação competente mas demasiado contida. Resulta quando, num flashback inspirado sobre o seu passado, se entende a origem da sua relação conturbada com Paulinha, mas pedia-se uma maior intensidade quando é encostado às cordas pela acção concertada da polícia e da classe política contra o seu império, e todos sabemos do seu talento inegável. Em sentido inverso, temos Duran Fulton Brown, como Alex, surgindo apenas para snifar infinitas linhas de cocaína, esquecendo-se de revelar qualquer complexidade emocional ou fazer o espectador importar-se com o seu destino. Salva-se, um pouco, quando contracena com Gabriela Loran pois a química é intensa e há uma sensação de caos, violência e prazer a permear as cenas. Apesar disso é uma oportunidade perdida, fruto de um casting infeliz, para o qual se pedia muito mais.
Do ponto de vista técnico, tem as melhores sequências de acção que vimos de uma produção portuguesa nos últimos anos, com um estilo de filmagem “guerrilha”, com câmara à mão e bem perto da acção. Isto é de sobremaneira visível na invasão policial da favela durante o filme, com uma longa sequência plena de intensidade entre bandidos e polícias mas que determinadas reviravoltas nos fazem reflectir na maldade presente nos dois lados da barricada. Do lado sonoro, peca por exagero no volume de certos sons (falo do som das armas de fogo) mas isso não o impede de compensar com um excelente trabalho ao longo de todo o filme, com destaque para a música gravada durante os ensaios da escola de samba. Parece que estamos lá com as personagens graças ao inteligente trabalho de ambientação e na escolha de planos visuais impressionantes. Pena passar por lá tão pouco tempo, sendo um dos inúmeros fios narrativos perdidos durante a história.
O Último Animal tem excelentes momentos plenos de intensidade e acção, que esbarram num argumento a procurar complexidade mas cair continuamente na simplicidade vezes e vezes sem conta. Num ano carregado de excelente cinema português, o último de Leonel Vieira sabe a pouco para os amantes de cinema e falha em conectar o espectador emocionalmente com a história, mas confirma o realizador como o mais internacional de todos por terras lusas. O abrir de novos mercados poderá ser o “balão de oxigénio” que a indústria portuguesa tanto precisa.