Existem cineastas que simplesmente dominam o seu espaço enquanto, simultaneamente, procuram expandir e desabrochar o seu cosmos para uma audiência constantemente em crescimento e para uma nova geração de artistas, inspirados pela grandiosidade da captura dramática do movimento humano na sétima arte. Seja através de uma lente ou de tinta. O Rapaz e a Garça (título em Portugal) marca o inevitável regresso de Hayao Miyazaki após se reformar desta carreira pela (possivelmente) sétima vez, na sua tenra idade de 82 anos. O realizador é consistentemente convocado pela sua imaginação que desafia o seu corpo a permanecer neste processo infinitamente criativo, concebendo sempre conceitos para um próximo projeto após uma última longa-metragem. Existe somente um único trágico formato de reforma para este homem.
Mortalidade envolve completamente esta narrativa, situada em 1943 – durante a guerra do pacífico –, que explora a viagem psicológica e física de Mahito (Soma Santoki), um jovem rapaz a sofrer silenciosamente com a morte da sua mãe, Himi (Aimyon), seguindo o seu pai, Shoichi (Takuya Kimura) e a sua madrasta, Natsuko (Yoshino Kimura), para a sua volumosa propriedade no campo. Acompanhado por diversas empregadas, Mahito sente-se desconectado desta família e enraivecido pela presença desta mulher grávida com o seu futuro irmão. A vontade de abandonar esta realidade é enaltecida pelas exclamações de uma misteriosa Garça com uma voz humana, que procura atrair o jovem para a abandonada, arruinada e selada torre do seu falecido tio-avô; um portal para um mundo alternativo, onde a sua mãe está viva.
Previsivelmente, os componentes comuns de uma obra de Miyazaki permanecem monumentais como a composição musical do brilhante Joe Hisaishi, que persegue a audiência com os seus toques melancólicos enternecedores ou a sua animação extraordinariamente maravilhosa que, além dos seus toques expressionistas excecionalmente assombrosos, atribui a cada personagem caraterísticas únicas que as diferenciam – existe uma simples cena da família e as empregadas a caminhar cujos visuais paralisaram-me com a sua qualidade –, demonstrando a habitual dedicação do realizador a detalhar os seus elencos com aspetos insólitos, notavelmente relevantes para esta atmosfera.
Inspirado pelo romance How do You Live (1937), de Genzaburo Yoshino, Miyazaki adapta esta obra literária com uma percepção intrigante, propositadamente ignorando fieldade aos eventos originais, escolhendo, invés, salientar as emoções que estas palavras conjuraram na sua pessoa. Típico do realizador cujas (raras) adaptações se focam no impacto sentimental individual do autor e nas suas sequelas criativas, comprovado em Howl’s Moving Castle (2004). O Rapaz e a Garça destaca-se como uma curiosa amalgamação da completa filmografia do auteur, incorporando os seus temas habituais, pontos narrativos dispersos, traços típicos físicos e psicológicos de personagens e um ambiente fantasioso que eleva e distingue a realidade humana. O conceito de um jovem enveredar por um espaço mágico ou desconhecido não é particularmente estranho para um realizador fascinado pelo confronto entre inocência e brutalidade. Apesar desses elementos comparáveis às suas restantes obras primas, The Boy and the Heron nunca se sente como repetitivo ou derivativo, representando perfeitamente a carreira deste cineasta e atravessando a sua jornada espiritual com uma profundidade singular tocante e devastadora. Miyazaki sempre percorreu este trilho entre fantasia e realidade com uma confiança invejável e uma visão simultaneamente esperançosa e cínica, consciente que a mente aberta infantil permanece acesa numa fase adulta, ainda que as portas sugiram estar cerradas.
As chamas que clamaram a mãe de Mahito, indistinguíveis dos seres secundários que rodeiam a cidade, infetam o corpo do rapaz em movimentos expressionistas, onde as labaredas do incêndio absorvem a sua pele, clareando os seus passos e inalando a vida de Himi, desaparecendo como uma fénix para um lugar distante do seu filho. Inerentemente, esta é uma obra inspirada pela juventude do artista, numa transição complexa entre um país em guerra e a morte da sua mãe, influenciado pela sensação de crescer num mundo habitado somente pela perda. Um canto de cisne que aventura-se por conceitos inéditos, apropriados para um criador envelhecido, vasculhando por memórias da sua infância que batalham com a presente recordação da sua mortalidade, iluminando um túnel cada vez mais próximo e produzindo uma justaposição engenhosa onde aprendemos mais sobre a vida no nosso nascimento e na nossa morte. Finalidade, legado, expectativas e o mundo despedaçado que deixamos aos nossos filhos, lentamente empobrecido pelas nossas mãos com a esperança que as suas sejam limpas da escuridão. É uma história acerca de impacto. O impacto da morte nas nossas vidas; o impacto das palavras no nosso amor; o impacto de um conto na nossa visão; de uma ação nas nossas ligações; de um pensamento no nosso sono; o impacto do presente no nosso futuro.
Ocasionalmente, uma impressão de dispersão espalha-se particularmente no seu terceiro ato, como uma história ainda a descobrir o seu próprio caminho e propósito. Miyazaki demonstra um estilo de storytelling surpreendente, principiando a produção das suas longas-metragens isentas de um argumento, criando storyboards com diálogos durante o percurso de filmagens, desenvolvendo a sua história naturalmente, sem uma conclusão ou direção intencionada. É uma relação simbiótica que permite a animação de comunicar a sua viagem narrativa ao seu criador; fomentando o seu script e vice-versa; onde o desenho traça literalmente o seu destino, movido pela atual emoção. Precisamente por este motivo, é um milagre a consistência de obras-primas deste cineasta, pois este método é absolutamente insano e o próprio realizador admite essa noção. É uma decisão que arrisca danificar o potencial dramático de certos instantes nesta película, com personagens secundárias súbitas que incluem um exército de periquitos humanóides com designs e cenários que aludem a religião, violência e fascismo. Todavia, estas escolhas realçam o seu charme e elevam as suas mensagens da metáfora ao literal, pois como os seus protagonistas, Miyazaki aventura-se psicologicamente e criativamente pelas suas próprias histórias, descobrindo-se em cada epílogo, dentro e fora das suas páginas.
Impossível assistir O Rapaz e a Garça sem reconhecer um futuro desprovido de Miyazaki. Esta sua última obra contém múltiplas camadas e uma destas é justamente a sua mortalidade assistida por um receio paralelo à sua confiança na humanidade, consciente que, talvez, não há mais nada a fazer em relação ao nosso mundo. É uma despedida. Não intencionalmente, pois o realizador despreza despedidas, mas para o público é inevitável sentir a sua imagem final como um Adeus. A pergunta permanece. How do You Live? Como continuar a viver num mundo destruído, sem um amanhã? Distante da pretensão de possuir respostas, Miyazaki meramente demonstra que apesar dos nossos fracassos marcarem fisicamente os nossos corpos, mentes e o nosso planeta, o trivial ato de permanecermos vivos é uma vitória que carregamos até ao túmulo. Como sempre, Miyazaki compreende a contraditória essência da complexa e simples existência humana. Como viver? A única maneira como conseguimos. Vivendo.
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