O Misterioso Caso de Lázaro Lafourcade (2023)

de Pedro Ginja

Um Mercedes descapotável circula por uma estrada ladeada de árvores, a conduzir uma mulher. Nas colunas ouve-se uma das mais reconhecidas árias criadas por Mozart “Der Holle Rache”, parte integrante da sua ópera icónica, A Flauta Mágica (1791). Nela há uma defesa acérrima da sabedoria como a única forma de tornar o homem livre das amarras dos que o oprimem e se consideram superiores, uma clara referência à aristocracia e à tirania. Transportando esta máxima para os dias de hoje e os chamados ricos poderiam ser adicionados a esta lista e a cultura como a única sabedoria que nos pode tornar verdadeiramente livres.

Reconheço neste O Misterioso Caso de Lázaro Lafourcade de Tiago Durão essa intenção de ir para além dos habituais caminhos do facilitismo na apresentação de um produto cultural para atrair as “massas” e a opção de desafiar o espectador, para além do seu nível de conforto. A história passa-se na década de 50 e acompanha a visita de toda a família Lafourcade à casa do seu patriarca Lázaro (Ruy de Carvalho) para um jantar que o próprio convocou de urgência para a discussão do seu testamento. Antes de o revelar, Lázaro surge morto no seu quarto. O inspector de polícia (José Raposo) é chamado para investigar e descobrir o culpado de um leque de familiares em que cada um aparenta ser mais suspeito que o outro. A pergunta fica no ar – Quem terá assassinado Lázaro Lafourcade?

Antes de fazer qualquer comentário sobre o filme deixo já uma sentida e sincera homenagem a Ruy de Carvalho nos seus 80 anos de carreira sempre ao mais alto nível e este papel de Lázaro não é diferente. Numa cena magistral à mesa de jantar, o actor espalha o seu gravitas apenas através da força do olhar, de pequenos trejeitos faciais e breves hesitações, sem dizer uma palavra, é suficiente razão para comprar bilhete para assistir a mais uma das suas inúmeras lições na arte de representar. Mas não está sozinho e nem só de silêncios vive o filme. Aliás o seu ponto mais forte são os diálogos excepcionais num equilíbrio periclitante entre a comédia (bem negra como toda deveria ser) e o drama. Há um nível de erudição elevado com constantes diatribes literárias e contínuas referências a autores célebres como uma espécie de easter eggs para os apreciadores dos grandes mestres mas sem afastar quem deles não tem conhecimento. Há uma familiaridade comum a tantas famílias bem demonstrada numa das frases mais icónicas do filme proferida por Amélia (Lídia Muñoz) – “É de imaginar Sr. Inspector que, como qualquer família, temos um dom especial para nos levar todos à loucura”. Tudo isto saído da mente de Tiago Durão e Ana Ramos que criaram, no seu argumento, algo único na cinematografia portuguesa. Esse entusiasmo acaba por prolongar algumas cenas ou falas para além do desejado mas a qualidade do que é dito nunca é posta em causa.

Existe uma dose muito saudável de loucura em todas as personagens que é sobejamente aproveitada pelo segundo ponto mais forte do filme, o seu conjunto de actores. Desde o segredo mais bem guardado de Portugal, Maria José Paschoal, que após encarnar, por breves minutos, Amália em Variações (2019) volta ao cinema com esta viperina, implacável e trágica tia de nome Aurora. Há uma teatralidade e exagero delicioso no modo como atanaza a vida dos seus familiares enquanto recorda os tempos gloriosos do seu passado longínquo. Passamos ainda por Dalila Carmo como Laura, uma alcoólica e amargurada mulher presa num casamento em desmoronamento total com Óscar (Pedro Lamares), um professor universitário em plena crise de meia-idade. Ambos partilham cenas carregadas de um ódio perfurante de onde saem as maiores gargalhadas. Finalmente, a terminar o elenco da família Lafourcade temos os irmãos Amélia e Raúl, interpretados por Lídia Muñoz e Isac Graça respectivamente. Amélia é um free spirit, amante do etéreo e a quem Lídia Muñoz dá uma energia (boa-onda) difícil de resistir e que assenta na perfeição à personagem. O mais instável do grupo é claramente Raúl com uma doença misteriosa onde ora permanece catatónico ora explode e “dispara” em todas as direcções. Isac Graça é enorme em revelar uma personagem complexa e perturbada sempre com o coração na mão e com as palavras como armas de arremesso. A assistir a tudo isto temos José Raposo como o inspector que nunca ganha um nome, e contínua como um “fantasma” incrédulo face ao que vê e ouve durante a investigação. E ver a cara de José Raposo, durante os interrogatórios, a ouvir cada um dos suspeitos é um prazer difícil de igualar. Mas é quando todos se juntam, na mesma cena, que a magia verdadeiramente acontece. Abençoado sois, “casting perfeito”.

Do lado técnico temos de referenciar a direcção de fotografia de Frederico Velez e o trabalho de câmara na criação de uma identidade visual marcante. Uma palavra ainda para o design de som a seguir o mesmo caminho assim como ao enorme investimento em apresentar música original de qualidade da autoria de Nuno de Sá, Laura Macedo e dos Xerife. Aqui, no entanto, tanta diferença de sonoridade acaba por prejudicar e retirar a identidade construída tão bem noutros aspectos.

Como disse Huxley – “A caneta é mais poderosa que a espada” e ainda mais quando na mão de Tiago Durão e Ana Ramos na escrita desta sátira mordaz disfarçada de investigação criminal por intermédio de um humor negro hilariante e um elenco absolutamente extraordinário. E tudo isto em 55 minutos apenas. É obra não? Incorrecto, é o Misterioso Caso de Lázaro Lafourcade.

Ps: Porventura não foi Huxley que o disse mas poderia ter sido.

3.5/5
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