A noite desperta com a voz confiante e segura de Vitor Lobo (Adriano Luz), na Rádio Viva FM. Um “Bom Dia” marca a assinatura deste radialista para com os seus ouvintes, estabelecendo uma conexão através de conversas por telefone, acerca de tópicos que surgem pelo anoitecer. Este episódio de “O Lobo Solitário” foca-se nas emoções, atravessando o controlo humano sobre estas, e os profundos e tenebrosos sentimentos que o ser esconde do mundo. Após uma caminhada pelo “metafórico” corredor da morte, Vitor inicia o seu programa num espaço calorosamente confortável, com uma atitude serena de rotina, domínio experiente do seu ambiente e uma voz que oferece consolo e tranquilidade distinta, capaz de ultrapassar as estradas vazias até às nossas casas. Assim é introduzido este protagonista, com um conforto suspeito que expande gradualmente até o irromper da madrugada, numa sessão interrompida pelo estranho telefonema de um velho amigo.
O Lobo Solitário é uma curta-metragem intensamente impressionante, realizada com mestria por Filipe Melo e desenvolvida com um único plano-sequência, cuja conceção surge em benefício emocional narrativo, distante da presunção típica de produções que empregam esta admirável coreografia visual somente como um adereço de ego. Existe significado implementado nesta técnica que enriquece a experiência desta história como uma viagem profunda e arrojada ao universo da personagem principal e à sua consequente demolição, gravada ao vivo, para milhares de ouvintes e espetadores. O primeiro ato é suficiente para o público envolver-se na perícia cinematográfica, e esquecer a execução do plano-sequência, pois a naturalidade dos movimentos de câmara estão harmonizados com os pontos dramáticos de um argumento brilhante que se recusa a atrair atenção exclusiva para um aspeto singular neste enredo, impedindo a distração da audiência do núcleo narrativo. Manifesta-se uma verdadeira compreensão da essência do cinema, como uma simbiose fundamental dos diversos elementos que compõem a sétima arte, cimentando Filipe Melo como um artista indispensável no grande ecrã e salientando O Lobo Solitário como uma das melhores obras nacionais de sempre.
No comando deste programa de rádio, está Vitor Lobo, interpretado por Adriano Luz que insere o charme comum de locutor e permite a audiência aderir a esta jornada imprevisível sobre o passado obscuro de um homem. O ator é acompanhado por um excelente elenco, maioritariamente constituído por atuações vocais, que elaboram o espaço aberto desta personagem, em portas fechadas, e contribuem para a sua destruição emocional e da audiência, todavia é Adriano Luz que carrega a pressão de entregar a credibilidade necessária a esta narrativa, representando estas conversas irónicas com a energia macabra de um indivíduo preso entre atuação e a sua natureza demente, desligado da realidade com um controlo específico horrendo, como se a sua persona da Viva FM permanecesse constantemente ativa, mesmo distante desta noite e dos momentos que exigem uma honestidade medonha. A sua performance é inquietante, precisamente por sobressair com uma sinceridade egoísta de celebridade em ignorância da tangibilidade das suas ações.
Enaltecida pela extraordinária direção de fotografia de Vasco Viana, cuja iluminação alvorece como um ambiente de sonho repousado e finda como severamente desconfortável num pesadelo aterrador; pela direcção de arte de Juan Cavia; pela atmosférica banda sonora de Filipe Melo e Paulo Furtado; e pelo seu pacing absorvente, O Lobo Solitário comenta acerca da cultura de celebridade e personalidade que reside na nossa sociedade, usufruindo de um criador em completo controlo de todos os elementos cinemáticos para construir uma peça de puzzle perfeita. Filipe Melo demonstra consciência que um dos aspetos mais assustadores da nossa existência é a verdade sombria que o ser humano oculta do mundo, a traição de uma voz de confiança e a negação dessa realidade, uma que persegue a audiência após os créditos finais, desprovida do pedaço de ficção presenciado, para a camuflar.
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[…] | O Lobo Solitário, de Filipe Melo (Portugal, 2021, […]