Eu não gosto de ir ao cinema para poder dizer que o melhor do filme que fui ver foram os M&Ms com recheio de manteiga de amendoim que comprei antes da sessão – como no Tenet -.
O Ano da Morte de Ricardo Reis é um filme bom. Tão mas tão bom, que a qualidade dos aperitivos nem é para aqui chamada.
João Botelho já traz nas suas costas o peso e aprendizagem fortes de trabalhos anteriores baseados em obras literárias – o autor já revisitou alguns gigantes literários: Agustina Bessa-Luís em A Corte do Norte (2008), Fernando Pessoa em o Filme do Desassossego (2010), Eça de Queirós em Os Maias (2014) -. Com o Ano da Morte de Ricardo Reis (2020), o realizador mostra o progresso e refinamento que é fruto deste trabalho sólido e constante sobre a palavra escrita.
Esta é uma obra impessoalmente sensível que enquadra a realidade de uma Lisboa e Europa fascistas, sobre uma contemporaneidade e poética visuais únicas, e que usa os códigos visuais do noir de uma forma incidente, actual e sofisticada – ainda que pontualmente excessiva em alguns casos -. Tudo isto embrulhado num pacote intimista, introspectivo, real, humorado, e ocasionalmente mordaz, que parece definir o registo do que poderia ser um subgénero próprio: um filme neo-noir poético-teatral: é um filme, que é um poema encerrado numa peça de teatro, dentro de um filme.
Fernando pessoa não determinou a data da morte do seu heterónimo, e é sobre isto que a premissa capitaliza. A imaginação interlaça-se com o real: o heterónimo de Fernando Pessoa que empresta o nome à obra regressa a Lisboa a 29 de Dezembro de 1935, terminando o seu exílio de 16 anos no Brasil. A sua história divide-se entre duas mulheres do hotel onde se hospeda, objectos de desejo, luxúria, e apego: Marcenda (Victoria Guerra) jovem e abastada, e Lídia (Catarina Wallenstein) a empregada; O seu criador – e agora confidente -, espírito de Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto) com o qual partilha as dúvidas e questões que assombram a sua – improvável – existência; e a própria Lisboa e Portugal, onde de forma progressiva o fascismo Novo-Estadista começa a dominar.
O Ano da Morte de Ricardo Reis é baseado no livro do gigante literário José Saramago (Prémio Nobel da Literatura de 1998). Nunca o cheguei a ler. Não faço ideia de se é uma fidedigna adaptação do material fonte. Mas também, sinto este filme como um absoluto em si. – o The Shining (1980) de Stanley Kubrick também toma liberdades criativas com o material fonte – o livro The Shining (1977) de Stephen King –, e não é por isso que tem mais ou menos valor… Porque tratando-se de um filme tão bom, a verosimilhança com o material fonte é secundária.
A performance do elenco principal é consistente do inicio até ao fim. As escolhas dos actores para as personagens não poderiam ter sido mais acertadas, mas é particularmente especial a de Chico Díaz. É o que parece ser uma escolha inequívoca para o papel de Ricardo Reis: sente-se inequivocamente certo na imagem mental que ainda nem sabíamos ter do heterónimo de Fernando Pessoa, mas ao qual corresponde sem qualquer tipo de estranheza. É um Ricardo Reis que sentimos familiar, com quem simpatizamos, que nos fala, e que tem uma poesia muito própria na sua forma de falar e de agir. Ele é uma ficção consciente, que também se sente humana, com todas as imperfeições próprias de quem existe. É um poeta, e é uma ficção, mas também é um homem: falível, frágil, e por isso tangente.
A música por Daniel Bernardes é outro dos elementos do filme que, em composições evocativas e que se sentem causais, nos deixa com uma sensação constante de desconforto, familiaridade, saudade, e mistério, em explorações de naipes de cordas que poderiam casar bem com qualquer obra de Alfred Hitchcock.
Cada frame to filme poderia ser impresso, emoldurado, e pendurado na parede. A estética desta obra assenta no noir, mas tem dentro de si algo de profundamente actual que não consigo bem perceber, mas que nos puxa. É um magnetismo indiscritível pelo belo e íntimo, resultante de um trabalho extraordinário de arte, composição e desenho de luz, e que conferem a todas as imagens uma elegância e sumptuosidade muito pouco comuns. O mise-en-scène finamente articulado faz-nos por vezes pensar em obras de Orson Welles como Citizen Kane (1941) ou Touch of Evil (1958), com planos onde todos os elementos – actores; décors; figurinos – se articulam e concretizam para servir apropriadamente a narrativa.
Fiquei com a impressão – quase instantânea – de que o filme era bom. Tão bom aliás, que me comecei a questionar se realmente teria sido assim tão bom. Mas acabei por concluir que sim: é um filme praticamente perfeito, porque praticamente não tem defeitos. Estive reticente sobre dar um dez… Não por achar que o filme não o merecesse, ou porque não pudesse, mas por achar que isso pudesse ser visto como uma inflação, e que isso poderia descredibilizar – para quem quer que seja que fosse ler esta crítica –, o valor do filme. Felizmente para todos os envolvidos nesta presente situação – entenda-se: eu, e o(s) leitor(es) -: não poderíamos estar mais enganados.
Este não “é só mais um daqueles filmes queridinhos da crítica”, ainda que só pelo peso do autor cinematográfico – João Botelho -, e do literário – José Saramago -, o pudesse ser. É um filme que sem qualquer tipo de dúvida merece todo o crédito que tem e que lhe estou a dar, bem como todas as 5 estrelas com que o avalio. Porque uma crítica é uma opinião, e uma opinião é – mais do que qualquer outra coisa – uma apreciação. E “dez de dez” é a apreciação que eu tiro da experiência cinematográfica singular e profundamente especial e marcante que para mim foi – e é – “O Ano da Morte de Ricardo Reis”. É um sólido 5/5. Mas é só o meu sólido cinco de cinco.