O cinema não existe num vácuo sociocultural, não é imutável nem tampouco imune ao seu contexto. Acompanha, pois, o desenvolvimento científico-tecnológico, transforma e é transformado por outros sistemas, como é o caso de, por exemplo, os videojogos. As novas tecnologias abrem portas a novas formas de fazer cinema, a novas experiências sensoriais e a novos desafios teóricos e práticos. Das mais diversas maneiras, interatividade do dispositivo é algo que tem vindo a ser trabalhado, no sentido de imergir, cada vez mais, o espectador na experiência do filme. Segundo um artigo de Bruna Souza na revista Prensa: “telas gigantes, projeção a laser, novas tecnologias de som e imagem, além das salas 4D que exploram os nossos sentidos, são algumas das ferramentas usadas para nos imergir dentro dos filmes”. Nesta conjetura tecnológica, onde se enquadra a realidade virtual? Neste artigo, proponho-me a falar sobre a realidade virtual no cinema, assim como alguns aliados da realidade virtual e aspectos que a compõem.
CINEMA E TECNOLOGIA
Segundo um estudo da cineasta de animação, Jeong Da-Hee, a evolução do cinema está íntima e diretamente associada aos avanços científico-tecnológicos que marcam a modernidade. Enquanto arte, o cinema transmutou a sua forma, de mudo para sonoro, de monocromático para colorido, de película para digital, etc., e tudo indica que continuará a transmutar-se com o passar do tempo, sempre em concordância com os novos desenvolvimentos científico-tecnológicos.
Os mais recentes desenvolvimentos no campo da geração de imagens por computador (CGI) caracterizam, assim, apenas mais um passo evolutivo e natural numa arte que pela sua natureza não poderá nunca desprender-se da sua ligação à tecnologia […] a necessária indexação entre imagem fotográfica e o seu referente desvanece-se.
Com o resultado da tecnologia digital, o dispositivo cinematográfico assumiu uma forma digital, o que, segundo a mesma autora, abalou o valor estético da sétima arte. O cinema atual é indissociável da tecnologia digital, sendo dependente desta. Assim sendo, a indústria cinematográfica caminha em direção à reprodução aparentemente mais fiel da realidade. Ou seja, numa tentativa inicial de reprodução da realidade dita “real”, a tecnologia proporcionou ao cinema a construção de uma realidade virtual. Segundo Nelson Zagalo, doutorado em Ciências e Tecnologias da Comunicação, é “através de um processo evolutivo da composição da cinematografia CGI, do motion capture e a realidade virtual que o novo “cinema virtual” aparece […] os elementos virtuais passam a dominar por completo a imagem”.
CINEMA E REALIDADES VIRTUAIS EM CRONENBERG
Segundo Zagalo, o cineasta David Cronenberg, no filme eXistenZ (1999) procurou enquadrar a realidade virtual como um videojogo numa tentativa de criar uma alegoria ao cinema. Na perspectiva do autor, o intuito do cineasta foi que o filme discutisse o cinema, nomeadamente as problemáticas associadas à “formatação do publico” na narrativa clássica de Hollywood.
Cronenberg afirma neste filme que não existe distinção entre real ou virtual uma vez que a própria realidade é ela própria uma construção de cada um de nós e desse modo é sempre virtual. Nesse sentido, vê o cinema como uma enorme realidade virtual sendo que o jogo é apenas um “pretexto destinado a multiplicar as entradas do espectador”.
O FATOR INTERATIVIDADE NAS NOVAS FORMAS DE FAZER CINEMA
Os académicos Lombard e Snyder, citados pela Jeong Da-Hee no seu estudo, referem que a noção de interação, em sentido lato, respeita a toda a ação que um ser humano exerce com um objeto, pessoa ou entidade num determinado contexto. Por outro lado, a media que oferece tal possibilidade é considerada interativa. O cinema interativo converte o espectador passivo tradicional num agente ativo, ao conceder a oportunidade de participar.
Segundo o realizador Jonathan Steuer, citado por Jeong Da-Hee, a interatividade é fator essencial na construção do ambiente virtual. Assim como o fator vivacidade, a interatividade é definida na medida em que o utilizador pode influenciar a forma e conteúdo do dispositivo dentro do ambiente mediado. Existem dois tipos de interatividade no cinema: hipertexto e realidade virtual.
A realidade virtual permite que o utilizador se torne ator ou personagem e cause ocorrências e/ou explore o mundo ficcional naquela realidade virtual construída, o que pode ser entendido como um videojogo constituído em ambiente cinematográfico, o que não acontece com hipertexto. No caso da realidade virtual existe imersão ativa do utilizador naquela experiência. Por fim, a interação varia consoante as características do dispositivo em si e as características do próprio utilizador. O utilizador vivencia diferentes profundidades de interação consoante o modo como escolhe participar.
PARA ONDE VAI O CINEMA?
Conforme Jeong, à medida que aumentou o interesse na realidade virtual, tecnologias relacionadas desenvolveram-se e a sua comercialização aumentou. Como resultado, a combinação do cinema com a realidade virtual é testada e colocada em prática.
Alguns autores preveem que a realidade virtual não passa de uma ferramenta tecnológica em voga, tal como foi a tecnologia dos óculos 3D.
De acordo com a jornalista, Bruna Souza, o cineasta brasileiro Ricardo Laganaro, um dos pioneiros a servir-se da tecnologia de ponta na sétima arte, alega que “a realidade virtual é o futuro do cinema”. Serrano também cita o cineasta:
“O que o cinema precisa de novo é trazer uma experiência que o espectador só sente naquele meio. E a realidade virtual traz isso. […] É uma forma de cinematografia nova. É mais contemporânea. Traz emoções que o cinema traz, mas de uma forma diferente e, digamos, mais corporal.
O guru e artista da realidade virtual Chris Milk defende que “os filmes do futuro oferecerão experiências imersivas”. Milk prefere falar em “story living” ao invés de storytelling, o que reforça a sua posição de que a experiência cinematográfica evoluirá de maneira que o espectador, ou, neste caso, utilizador, sinta e interaja com o mundo ficcional do filme de modo verdadeiramente real e natural. No entanto, enquanto o cinema é uma experiência coletiva, a realidade virtual é uma experiência solitária e extremamente pessoal. Na sala de cinema, há lugar para trocas emocionais entre as pessoas que partilham do mesmo espaço físico, enquanto assistem ao mesmo filme. Todavia, a realidade virtual serve-se de um método de visualização exclusivamente pessoal através de Head-Mounted Display. Ou seja, a troca estabelece-se exclusiva e unicamente entre o dispositivo e cada utilizador.
DISCUSSÃO
Será a realidade virtual uma regressão relativamente ao cinema tradicional ou uma evolução na manifestação da arte? Irá a realidade virtual substituir o cinema como o conhecemos ou aliar-se a este, potenciando-o? Existirá alguma forma de a realidade virtual atuar de modo colectivo, de modo similar à coletividade das salas de cinema tradicional, sem, por isso, prescindir da experiência íntima que anseia partilhar com o utilizador individual? Fará sentido falarmos em utilizador perante um dispositivo do cinema?
Referências bibliográficas
Jeong, D. (2021). A comparative study on the characteristics of interactivity between virtual reality (VR) and interactive cinema. Journal of Multimedia Information System, 8(3), 167–174. https://doi.org/10.33851/JMIS.2021.8.3.167
Serrano, F. (2020, Dezembro 2). Realidade virtual é nova forma de cinema, diz brasileiro premiado no Emmy. Exame. https://exame.com/inovacao/realidade-virtual-e-novaforma-de-cinema-diz-brasileiro-premiado-no-emmy/
Souza, B. C. (2021, Setembro 10). O futuro do cinema e a realidade virtual. Prensa. https://prensa.li/@bruna.cruz/o-futuro-do-cinema-e-realidade-virtual/
Zagalo, N. T. (2007). Convergência entre o cinema e a realidade virtual [Tese de doutoramento]. Universidade de Aveiro.
Filmografia Cronenberg, D. (Realizador). (1999). eXistenZ. Alliance Atlantis Communications. Natural Nylon Entertainment. Serendipity Point Films. Téléfilm Canada. The Movie Network. Union Générale Cinématographique. Dimension Films.
Este artigo foi originalmente realizado como um artigo universitário por Janai Reis e Beatriz R. Almeida.