Nosferatu (2024)

de Rafael Félix

Uma caixa de música enche o ar de melodia. Uma sombra à janela. O luar a banhar o quarto. As cortinas ao vento. O desejo e o temor na voz de Ellen (Lily Rose-Depp): “come to me”. Ouve-se nos primeiros momentos de Nosferatu. Uma antecâmara para o seguinte pesadelo. Sexo e pestilência, obscenidade e medo, vida e morte, inseparáveis.

Assim é a mais recente adaptação de Nosferatu, inspirado no original de F. W. Murnau que, por sua vez, havia adaptado (se usarmos um eufemismo) Dracula de Bram Stoker.

Alemanha. 1938. Ellen é inundada por visões há anos. Nelas, uma figura persegue-a, uma figura que a assusta e excita de igual forma. Quando Thomas (Nicholas Hoult), o seu noivo e o único capaz de afastar estas visões do espírito de Ellen, parte rumo à Transilvânia para vender uma mansão ao Conde Orlok (Bill Skarsgård), esta sucumbe a ataques de histeria constantes; gritos aterrados enchem a casa onde pernoita, facilmente confundidos por gemidos de um prazer indisfarçável. Orlok assombra os seus sonhos, sedutor e cruel, com a sua influência a inflamar a cada noite, a sua presença mais próxima a cada luar.

Este é o filme que Robert Eggers sempre quis fazer. Ainda The Witch (2015) não tinha sido apresentado em Sundance e já o realizador falava de querer dar nova vida ao clássico de Murnau. E nova vida lhe deu. A generalidade dos acontecimentos mantém-se próximo do filme de 1922, porém o tom é mais ousado. Eggers abraça as linhas sedutoras do texto original e esbate as fronteiras entre os desejos e a carne dos seus intérpretes. Ellen, apaixonada mas contida, uma tempestade de vontades silenciadas dentro de si, manifestações interiores a emergir, o querer insaciável circunscrito por um código moral qualquer. Orlok, a sedenta criatura a quem Eggers questiona se será mesmo ele quem controla os desejos de Ellen, ou se, pelo contrário, é ele que está sob a influência do seu feitiço. Thomas, passivo e inseguro, incapaz de ser suficiente para a noiva, treme quando esta lhe diz “nunca me vais satisfazer como ele”.

Os elementos familiares de Murnau vêm ao de cima, mas com os traços de sexualidade de Stoker, criando uma peça distinta de todas as outras apresentadas no já longo cânone de Dracula. Previsivelmente, Nosferatu ajusta-se à matriz criada pelos seus anteriores trabalhos, fundindo uma pesquisa absolutamente exaustiva e cuidada sobre a época – perfeitamente clara no guarda-roupa de Linda Muir e nos sets de Craig Lathrop – com temas e sensibilidades contemporâneas sobre despertar sexual, papéis de género e os lugares mais animalescos do espírito humano. O gótico que sustêm esta aura e a torna coerente com os restantes trabalhos de Eggers, ganha uma força diferente na câmara de Jarin Blaschke (e a dramática banda sonora de Robin Carolan também ajuda), que, com o realizador, forma uma das parcerias mais impressionantes do cinema moderno, em que a escuridão é tornada cor, sempre percetível e ao mesmo tempo arrepiante. Pouco se esconde atrás de um canto sombrio de um quarto, em vez disso as sombras e silhuetas são presenças em formatos de vulto, rodeados de branco lunar. Tudo está à vista e quando Ellen, durante um período de calmaria, questiona Von Franz se a “escuridão vem do interior ou do exterior?”, a resposta é dada pela atmosfera de Blaschke e pelo guião de Eggers: ambos.

O desespero desta pergunta é palpável nos sussurros de Lily Rose-Depp que não deixa nada a desejar àquela que seria a escolha inicial para o papel – Anya Taylor-Joy. Pelo contrário, o terror na face desta e a melancolia faminta do olhar sugerem que Nosferatu seria um filme bem diferente com a habitual colaboradora de Eggers e por isso ficámos todos a ganhar. É uma performance física e agressiva, pontuada por momentos de profunda fragilidade que, quando colocadas perante toda a monstruosidade do trabalho de Skarsgård, se elevam a um patamar que não se lhe sabia capaz. A coloquialidade do diálogo quase Vitoriano (o que não é de espantar pois Dracula é passado no Reino Unido e foi Murnau que o transferiu para a Alemanha) por vezes pode soar fora de lugar com a restante estética do filme, numa rara fricção entre página e tela nos filmes de Eggers, porém o desenvolver cada vez mais grotesco da narrativa transforma isso num detalhe menor, principalmente num trabalho que nunca se omite das referências a contos de fadas. Faz parte dos hábitos do realizador que em momentos faz lembrar Guillermo del Toro: a ausência de cinismo e o envolvimento sentido da fantasia. Os monstros podem ser monstruosos. São só mais aterradores por isso quando nas mãos de quem os trata com sinceridade.

Orlok, este monstro, é o personificar das vontades mais íntimas de Ellen. São necessidades reprimidas socialmente e literalmente: abandonada pelo pai quando se tornou mulher; em adulta, sufocada com o espartilho para a manter no lugar. Voltamos aos temas que The Witch apresentou quase há 10 anos, agora numa moldura diferente, sobre desejos desmesurados e despertares violentos. O caos que se espalha pela cidade de Wisburg é um espelho das pretensões frustradas de Ellen, que exigem serem realizadas. Repressões constantes espalham-se por toda a obra do americano e este é, possivelmente, o exemplar mais cristalino da perspetiva deste: a libertação é violenta, perigosa e inevitável.

Nosferatu é romântico, gótico, sensual e aterrador. É o filme com a estrutura mais clássica da carreira de Eggers, assim como, talvez, o mais percetível: um filme de estúdio com identidade e maneirismos de autor. Sente-se o fim de um ciclo. Encontrou a equipa de artistas que funciona numa simbiose perfeita – Blaschke, Muir, Ford e Lathrop – e com eles, Eggers cumpriu o sonho que era Nosferatu. Até aí chegar criou alguns dos filmes mais marcantes da última década, mudando a face do terror moderno pelo caminho. The Northman (2022) já havia deixado indícios disso e parece ter chegado o momento de o realizador partir para outros mares. Estes, já os domou.

4.5/5
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