Northern Comfort (2023)

de Pedro Ginja

It is not the destination, but the flight that matters.

Voar é uma das fobias que mais atinge o ser humano. Denominado de aerofobia, atinge cerca de um terço da população mundial e a sua intensidade é muito variável, oscilando entre um desconforto leve, uma constante ansiedade durante a viagem ou um medo debilitante que impede a pessoa de viajar, levando-a a procurar alternativas terrestres.

Em Northern Comfort (em português – Zona(s) de Turbulência) o medo atinge os níveis mais elevados e leva um grupo de aerófobos a procurar um curso que pretende que aprendam a controlar a sua fobia – “The Fearless Flyers Club”. O teste final do curso é viajar para a Islândia de avião, em plena altura de grandes tempestades. Um conjunto de infelizes coincidências e horríveis consequências leva-os a um hotel recôndito na ilha, onde a sua resiliência e alianças no grupo serão testadas. Conseguirá a razão vencer o medo?

O argumento explora bem a irracionalidade de uma fobia, iniciando com os níveis de desconforto muito elevados, e até à aterragem na Islândia consegue superar e aumentar os níveis de medo das personagens principais. No hotel da Islândia parece tornar-se noutro filme, em que os instrutores parecem viajar em sentido inverso relativamente ao medo. Esse descontrolo, de quem deveria ter o controlo da situação, leva a história para um nível de tensão inesperado e um escalar de situações cada vez mais extremas. Não parece haver limites na mente de Hafstein Gunnar Sigurosson para explorar as vertentes da nossa saúde mental e emocional, e apesar de haver um claro investimento na fobia do medo, de repente estamos a discutir sexualidade, amor, amizade e traumas de guerra com uma naturalidade e perspicácia notáveis.

Lydia Leonard, como Sarah, é a estrela de Northern Comfort e é a personagem na qual vemos melhor o medo espelhado nos olhos. Chega a ser angustiante ver as suas reacções às situações a que é sujeita, mas o que a torna memorável como personagem é o seu carisma, confiança e amor retratado para além da influência da sua fobia. O medo torna-a uma outra pessoa, que recorre à mentira e por vezes à violência para evitar o confronto com as suas limitações. Timothy Spall, como Edward, tem o arco mais explosivo e caótico, passando de escritor celebrado e respeitado até à construção de uma meticulosa revolução contra a “opressão” dos instrutores do curso. O caos é telegrafado ao pormenor e vai colocando no espectador a semente do que está para vir. Escolher Timothy Spall para encarnar esta personagem é uma opção deveras inspirada. Simon Manyonda, como Charles, representa a equipa dos instrutores e também ele partilha os sinais de que algo não está bem na sua mente. Sendo, claramente, o menor entre o trio de protagonistas, não lhe retira a destreza e talento em manobrar as várias facetas da condição humana, provando que se há algo que une todos os seres humanos é o medo. Mesmo nas personagens secundárias há um conjunto muito forte, parecendo mesmo partilhar o estatuto de principais tal é a sua influência no desenrolar da história. São todos os arcos que cada personagem tem que tornam este argumento e história tão impactantes para o espectador. São pessoas de carne e osso com escolhas infelizes, inspiradoras e confusas mas sempre verdadeiras com a evolução da história e longe das referências actuais do cinema comercial. Uma verdadeira lufada de ar “bem gelado”.

Com um trabalho de argumento tão impressionante, esteticamente acaba por não brilhar tanto. Tem do seu lado a majestosa e solitária paisagem da Islândia, uma personagem por si só, tal a “sombra” que projecta sobre os protagonistas nos grandes planos. Esse ambiente acaba por exacerbar a paranóia deste grupo desesperado por arranjar uma saída. A paleta de cores frias escolhida e a ausência quase total de sol (surge apenas quando as emoções vencem os medos) são outros factores inteligentes na criação do ambiente ideal para conduzir a história, mas depois não há um bom uso de luz, com os rostos a surgir muitas vezes pouco iluminados, ou com mais imagens marcantes para além dos grandes planos já citados. Nada de profundamente errado aqui, mas acaba por desiludir pela falta de ambição na criação de uma identidade visual para este argumento brilhante. O mesmo para a escolha musical que, apesar de grande qualidade, por vezes não se adequa e perde a oportunidade de trazer tensão suficiente para os níveis desejados, tanto no jazz de Daníel Bjarnason, a puxar mais pela comicidade do argumento, como na decisão de colocar como tema central As Quatro Estações: Inverno I de Vivaldi. Demasiado óbvio e reconhecível para ser relevante, engolindo os momentos que se queriam de transição e de reflexão.

O humor negro de Hafstein Gunnar Sigurdsson continua apurado e recomenda-se nesta ode ao medo e ao poder que este exerce sobre a condição humana. Reconfortante de uma maneira inesperada, relembra-nos que com a motivação adequada não há nada que nos possa vergar. Algumas más decisões na execução cortam as asas ao brilhante argumento, mas não o impedem de voar alto por terrenos pouco visitados no cinema actual.

3.5/5
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