“Apenas” com dois filmes – Get Out (2017) e Us (2019) – Jordan Peele catapultou-se para o topo da cadeia alimentar de auteurs ao construir peças que, no meio do seu humor aguçado e visões macabras da sociedade americana, contêm comentários sociais perspicazes e desconfortáveis – sejam eles sobre classe ou raça – e que nunca comprometeram o factor “espetáculo” que o grande ecrã pode proporcionar. Curiosamente Nope, o desafio mais ambicioso da carreira de Peele, é um trabalho que olha de frente para esta obsessão humana pelo espetáculo e pelo entretenimento, a níveis de absurdismo tal, que está disposto a colocar-se deliberadamente no caminho do perigo apenas por uma fração de segundo de escapismo ou fama.
OJ (Daniel Kaluya) – sim, OJ, essa piada também está por lá – e a irmã Em (Keke Palmer) são donos de um rancho de cavalos que fornece Hollywood, deixado pelo pai após a sua morte, em circunstâncias peculiares. Este espaço perdido nas planícies desérticas da Califórnia começa a ser alvo de estranhos acontecimentos: pessoas desaparecidas, animais em pânico, falhas de eletricidade e fenómenos meteorológicos que são difíceis de explicar por argumentos… terrestres.
A melhor forma de ver Nope é completamente às cegas. O próprio título é misterioso e não é por acaso. Ainda assim, os trailers e posters deixam patente que há algo de aparentemente alienígena a acontecer neste rancho, portanto vamos partir, pelo menos, com esse dado adquirido (quem escreve tem de se agarrar a alguma coisa, portanto agradeço a vossa compreensão). Dito isto, e tal como os melhores filmes – incluindo os seus trabalhos anteriores –, o novo trabalho de Peele não é necessariamente sobre uma qualquer ameaça extraterrestre, embora seja isso que conduz a narrativa onde ela tem de ir. Nope é, em vez disso, a projeção da compulsão por observar. Expõe-se o voyeur e o escravo que todos somos perante o espetáculo, e os fins e danos colaterais que estamos dispostos aceitar apenas pela distração efémera que nos é servida numa bandeja pela indústria do entretenimento.
Além deste impulso frenético que nos impede de desviar o olhar, Peele aventura-se pelo meio de comentários sobre a história apagada dos afro-americanos na indústria artística ou o aproveitamento, abuso e exploração, desde animais até crianças, em prol do nosso selvático consumo de espetáculo e desgraça alheia. Nope recorre variadas vezes à ideia que estas personagens, seja OJ a domar cavalos, seja Jupe (Steven Yeun) – um antigo child–star que ainda vive dos sucessos da infância – a domar chimpanzés ou seja Holst (Michael Wincott) – um diretor de fotografia que é chamado ao rancho – à procura de filmar o impossível, desesperam por controlar algo que não está destinado a ser domado, apenas por vaidade ou fascínio, como se a captação pela retina – ocular ou fotográfica – fosse a única forma de obter uma aparência de controlo sob o caos que os rodeia.
O lado maravilhoso de Nope é que vai oferecer a possibilidade de tudo isto que foi escrito acima, ser completamente obsoleto após outra visualização, porque a densidade e cuidado com o detalhe de Jordan Peele é tal, e a vastidão conceptual que preenche o seu terceiro filme é tão densa, que vai agitar conversas e conversas sobre as alegorias que ali passam despercebidas a uns, mas que para outras são claras como água.
Para os mais desatentos, também não vão faltar coisas para levar para casa, porque mesmo para quem não esteja para se chatear com o subtexto, Peele oferece um blockbuster imenso que mistura as paisagens e os elementos clássicos de um western com uma narrativa de ficção-científica aliados ao seu terror habitual, fazendo de Nope um filme de peças familiares, mas dispostas de forma única. As paisagens deslumbrantes que Hoyte Von Hoytema fotografa – desoladas de dia, mas cheias de vida ao anoitecer – dão um sentido de escala gigantesca numa história que é estranhamente pequena e íntima, ao contrário dos filmes onde mais se inspira como Signs (2002) ou, claro, Close Encounters of the Third Kind (1977) (onde Michael Abels vai buscar um pouco de John Williams mas fica um tanto aquém da sua extraordinária banda sonora em Us).
Toda esta grandiosidade proporcionada pelas câmaras IMAX dão espaço a que Peele consiga equilibrar o sentimento de escala épica, com a naturalidade das suas personagens e da sua relação, através de duas interpretações brilhantes de uma Keke Palmer com carisma e dinamismo para dar e vender, e Kaluya, que consegue dizer mais com um olhar do que alguns atores conseguem com monólogos de 3 páginas. As dinâmicas entre os dois e o puro assombramento perante os momentos mais sinistros de Nope escondem algumas fragilidades em relação ao ritmo de um filme que se mostra algo assimétrico na sua segunda metade e que, pela coragem dos seus conceitos e a da sua multitude, por vezes pode sentir-se mais frio e frustrante que os seus filmes anteriores. Se é para falhar, é sempre preferível que seja por excesso de aspirações e não por atracar no porto seguro da mediocridade.
Que bonito é ver salas de cinema cheias para comungar num blockbuster original, sem recurso a IPs reconhecíveis, e que de forma nenhuma sente necessidade de estupidificar toda a sua existência em prol do dólar extra. Nesta altura do campeonato, não há muitos realizadores a apelar às massas sem descurar a ambição dos seus conceitos, mas há um que segue lá na frente, destacado de todos os outros, e que compete praticamente sozinho no seu género, e esse é Jordan Peele, que ao contrário da sua personagem principal, continua a olhar para cima à procura de mais uma forma de surpreender um público que se tem visto dormente de originalidade nas últimas décadas.
Nope vai ser um filme que vai continuar a acender discussões daqui a 10 anos, e garante mais e mais para descobrir sempre que nos permitirmos a entrar no rancho dos Haywood (e do que quer que seja aquilo que Ruth De Long e a sua equipa de design de produção ali construíram a vigiar os céus).