Nomadland (2020)

de João Iria
nomadland

Zombie Economy” foi um termo atribuído à crise económica dos Estados Unidos, durante o período pós-recessão de 2011, descrita desta forma, pois não estava viva ou morta. Apesar dos esforços para aumentar o teto de dívida, o ambiente político turbulento e a perceção fraca da sua administração financeira resultou numa rutura do mercado de ações, referido presentemente como Black Monday. Aqui termina o meu conhecimento limitado sobre a economia americana e transitamos para a terceira longa-metragem de Chloé Zhao que investe o seu tempo nos efeitos pessoais e emocionais da subcultura que expandiu entre o caos da Grande Recessão. 

Neste cenário de colapso financeiro, seguimos a viagem de Fern (Frances McDormand), uma mulher viúva que abandona o seu passado e adota um estilo moderno da vida Nómada, fora da sociedade convencional, atravessando o Oeste Americano, numa carrinha. Baseado no livro de não ficção Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century, de Jessica Bruder, este é um western contemporâneo dramático que examina o fenómeno de trabalhadores mais velhos, sempre em movimento pelo país, à procura de emprego.  

Esta bagagem de condições económicas persegue a nossa protagonista pelo asfalto frio, fabricando um rasto de migalhas pelo caminho narrativo, como uma espécie de Hansel e Gretel deformados pelo capitalismo. Um ambiente fatigante detido e conduzido por indivíduos com a força física e espiritual do Titã Grego Atlas, castigado a carregar os céus, eternamente. Um mito que representa precisamente o peso das adversidades quotidianas, relacionado com o fardo excessivo da realidade que suportamos pelos ombros. Este grupo de Nómadas e a personagem principal compartilham semelhante complexo; o mundo desabou sobre os seus corpos, o seu país negou a sua humanidade e em vez de permanecerem estendidos pelo chão, erguem-se e prosseguem no seu trilho. 

O poder poético desta comunidade é capturado maravilhosamente por Chloé Zhao, uma realizadora que combina ficção e realidade no corpo da sua arte, desenvolvendo enredos inspirados pelos próprios sujeitos que encontramos na sua tela. Um estilo particular de storytelling destacado na sua filmografia que serviu como o ponto de atração para Frances McDormand, produtora deste projeto, oferecer esta posição a Zhao. A artista expande as fronteiras emocionais deste drama ao preencher o elenco com verdadeiros Nómadas a interpretar versões ligeiramente ficcionadas das suas pessoas, inferindo uma visão empática com tamanha franqueza e compaixão que impossibilita imaginar outra voz a produzir esta história.  

Sentimo-nos como passageiros na jornada de Fern, ao seu lado, a observar contemplativamente uma estrada vazia que oferece pouca esperança no horizonte. Zhao esboça uma experiência meditativa e intimista com respeito e afeição pelos seres captados na sua câmara, onde um rosto é fotografado com a intensidade equivalente de uma paisagem. Essas imagens panorâmicas variam no seu significado, refletindo paralelamente a beleza melancólica desta liberdade e a solidão dos espaços abertos sem fim à vista. 

Nomadland é uma exploração da relação vinculada entre identidade com o ambiente que nos rodeia, nomeadamente no emprego e na nossa casa. Impondo questões sobre quanto da nossa identidade é formada pela nossa ocupação e quanto dessa implementamos numa habitação. A espécie humana procura o conforto necessário para conseguir permanecer nesta batalha de existência; entretanto, como avaliar a essência de um sujeito quando todos os elementos que o complementavam desaparecem? Como encarar a nossa vida quando entidades consideram-nos como números ou um produto? Como proceder após perder tudo? Neste argumento, uma comunidade renegada pela sociedade, consciente da sua posição no mundo, tenta introduzir significado na viagem e rejeitar a ideia de um único destino como método de sobrevivência.

Frances McDormand encaixa nesta subcultura com uma naturalidade impressionante, sendo confundida em diversas ocasiões como um membro da comunidade, durante as filmagens. McDormand entrega uma performance contida e sensível numa personagem simultaneamente frágil e resistente. Acompanhada por um charmoso David Straithairn, capaz de convencer qualquer pessoa a conduzir pelo país inteiro, no lugar do pendura, ambos os atores expressam uma profundidade nas suas emoções reprimidas apaixonantes com o passado transmitido nos seus olhares.

A realidade desgastante permanece uma constante no progresso narrativo, desde as condições financeiras de Fern a uma cena onde Frances McDormand defeca num balde, dentro da sua carrinha (Se isto não incentiva a audiência a assistir este filme, não sei que mais dizer). Esta obra previne a corroboração de uma fantasia ao manifestar a liberdade verificada pelo elenco secundário e revelar simultaneamente os elementos atribulados deste life style que recordam a protagonista e o espectador das suas advertências. 

No entanto, prevalece um aspecto sedutor nas palavras de Linda May, Swankie e Bob Wells, Nómadas que atribuem um apetite orgânico a este campo inexplorado. Num monólogo comovente, Wells relata os fundamentos principais desta vida, com uma frase de despedida que estimula este desejo por compreensão. Para Fern, recomeçar implicou defrontar-se com uma sensação de limbo, onde nada diferenciava uma impressão de vida ou morte, herdando uma perspetiva que a coloca numa posição oposta ao seu passado. Para a sua pessoa presente, uma cama não é somente uma cama e um emprego não pode definir a sua existência.

Uma vontade persiste em reencontrar estas personagens no futuro com semelhante nível de otimismo que exteriorizam no trajeto deste enredo. Ponderamos qual será o próximo destino desta comunidade, reconhecendo a ausência de controlo sobre um futuro improvável de prever. Prosseguimos em movimento nestas circunstâncias labirínticas onde estabilidade é um conceito abstrato e nenhuma certeza ocorre sem dúvidas. O Amanhã perdura como uma incógnita, nos seus eventos e no que sentiremos, ainda assim, afirmo nesta crítica com confiança a minha única certeza atual; Chloé Zhao é uma artista cuja carreira devemos seguir atentamente, pela estrada fora.  

4.5/5
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