No Other Land (2024)

de João Iria

“Somebody watches something, they’re touched, and then?”

Na conclusão de No Other Land, esta é a pergunta que paira pelo ambiente nocturno, enquanto Basel Adra e Yuval Abraham reflectem no destino deste documentário, mas principalmente no destino dos seus respectivos lares, dos seus países, das suas famílias e deste conflito. A esperança parece distante e os pensamentos perdem-se nas palavras partilhadas, abandonados a meio do diálogo. Existe uma sensação de exaustão neste momento, uma que nós nunca iremos experienciar. Esta citação permanece comigo desde os créditos finais desta longa-metragem documental. É suficiente para uma dúvida existencial acerca do poder do cinema, do poder da sétima arte que em múltiplas críticas menciono apaixonadamente, e, essencialmente, para contestar a nossa humanidade. Quantas vezes é necessário apelar à compaixão e misericórdia do mundo para haver mudança? Quantas vítimas? Quantas mortes? Quantos vídeos? Quantos documentários?

Spoilers são irrelevantes. Ninguém nesta equipa está à procura de proteger as revelações deste documentário. É praticamente ridículo sequer mencionar esta palavra numa longa-metragem que expõe a tragédia Palestiniana perante o apartheid genocida de Israel. Spoilers são absurdos porque o propósito do filme está na transição entre saber e conhecer. Saber é ler esta crítica, folhear notícias online; conhecer é presenciar testemunhos, enfrentar este ambiente, ver este documentário e recordar eternamente as suas imagens. Conhecer é um acto pessoal e íntimo, fundamental no activismo. No Other Land é conhecer a realidade Palestiniana. Para Basel Adra, documentar não é uma actividade artística, é literalmente a sua vida. Uma das suas memórias de infância, captada em vídeo, envolve a invasão de soldados Israelitas à sua casa para prender o seu pai, um homem que lutava para preservar Masafer Yatta como território Palestiniano; um homem que filmava consistentemente tudo, para poder alertar o mundo e proteger o seu. Activismo é uma inevitável herança na sua família.

Desde 1980 que os habitantes de Masafer Yatta se defendem contra uma ordem de expulsão. Em 2022, os tribunais Israelitas declararam oficialmente esta área como uma zona de treino militar. No Other Land é um acto de resistência e de protesto por liberdade, um combate genealógico na sua documentação da expulsão deste povo e da destruição dos seus lares. O motivo é sempre o mesmo: “Estão em território militar”. Independentemente dos apelos, famílias são forçadas a assistir impotentemente à demolição das suas casas por escavadoras, e a encontrar habitações temporárias em grutas. Através de telemóveis e camcorders, Basel Adra e Yuval Abraham, um jornalista Israelita, capturam esta crueldade invasiva; uma comunidade a suplicar por humanidade ignorada por soldados e, consequentemente, pelo mundo, mesmo quando membros são incapacitados ou mortos, tanto pela IDF como por cidadãos aleatórios Israelitas, ansiosos por fomentar esta humilhação sangrenta. O cansaço de Adra e do povo palestiniano é sentido em cada frame desta longa-metragem, juntamente com a sua dedicação.

Além destas imagens de violência directa, No Other Land demonstra também a brutalidade psicológica sentida no mero acto de co-existir. Durante o progresso deste documentário, testemunhamos a relação entre Basel Adra e Yuval Abraham. A sua amizade pontifica ainda mais o contraste das suas rotinas e das suas respectivas liberdades – Abraham regressa à sua casa em segurança, ele pode regressar a casa no fim do dia e conduzir pelas cidades, enquanto Adra permanece impossibilitado de sair desta zona, simultaneamente impedido pela lei militar Israelita como pelo próprio reconhecimento que a qualquer momento, a sua casa e a sua família podem ser os próximos. Adra não tem escolha senão ser activista, senão lutar. Apesar de uma clara ligação amistosa, uma distância entre os dois perdura. Sem menosprezar o seu esforço ou as suas intenções benevolentes, afinal, num protesto, um soldado refere-se a Abraham como um “daqueles Israelitas pelos direitos humanos” e o seu apoio por esta causa implicou risco tanto para a sua pessoa como para a sua família, recebendo inúmeras ameaças de morte, mas esta desigualdade é uma realidade que ambos confrontam frequentemente. Abraham pode desistir, se assim quiser. Adra não pode.

Ainda assim, ambos continuam. Anos depois, o sucesso de No Other Land entra em conflito com o seu silencioso desprezo. É o único filme nomeado aos Oscars sem uma distribuidora, sendo lançado nos cinema americanos pela sua produção e pela sua equipa de realizadores que, necessário apontar, é uma colectiva de activistas Palestinos e Israelitas: Basel Adra, Yuval Abraham, Hamdan Ballal, e Rachel Szor. É estranho que o filme mais “perigoso” do ano para Hollywood é um que apenas apela ao fim da violência. Pronunciar amor pela Palestina na Cidade dos Anjos é basicamente arruinar uma carreira, lembremo-nos do medo de Jonathan Glazer, realizador de The Zone of Interest (2023), com as suas mãos a tremer, voz enfraquecida, enquanto proclamava uma mensagem de oposição ao genocídio provocado por Israel no seu discurso nos Oscars.

Décadas a acreditar que este era um conflito demasiado complexo para compreendermos apenas para ser tudo resumido de uma forma tão simples neste documentário. Uma imagem de uma casa destruída, na Palestina, rodeada por um exército armado, seguida por filmagens de uma estrada comum, em Israel, com um sinal a indicar a proibição do povo palestiniano. Não é complicado. É frustrantemente simples. Se antigamente habitava uma ingénua convicção de espaço suficiente para ambos, neste momento é absurdo pensar nesta como uma hipótese. Seria justo pedir a judeus para conviverem com nazis depois dos campos de concentração? Não foi por esse motivo que abandonaram a Europa rumo a Israel? Novamente, surge a questão: “And then?”.

As suas respostas flutuam pelo céu enquanto sonham por um futuro melhor. Recuando até uma memória digital de Adra, quando Tony Blair, antigo primeiro ministro do Reino Unido, visitou a Palestina, após a fatigante construção de uma escola na sua região, verificamos que esta presença estrangeira, noticiada pelo mundo inteiro, garantiu uma segurança temporária à sua terra. É enervante a ideia de depender profundamente de remotos países, culturalmente divergentes, para subsistir, para poder erguer a porra de uma escola. Neste instante, No Other Land recorda que um acto de indirecta sensibilidade exterior exigiu o duradouro sofrimento e a potente resiliência de um povo que nunca desistiu dos seus direitos humanos. Adra e Abraham apontam a urgência de alertar os Estados Unidos da América devido à sua disponibilização de armamento e ao seu excessivo investimento financeiro em Israel.

Infelizmente, a vergonha destaca-se principalmente nos holofotes. Neste sentido, documentar é erguer luz sobre o palco, é afirmar existência, afirmar uma realidade e é comprovar história. É uma forma de nunca deixar o público esquecer ou ignorar esta tragédia. Para os criadores de No Other Land, é uma necessidade indispensável pois enquanto continuarem a gravar, a esperança continua.

4.5/5
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