Nightbitch (2024)

de Lara Santos

“Motherhood, it changes you. It connects you to some primal urges.”

A maternidade é uma transformação e uma realização. Ser mãe implica colocar o bem-estar de um filho à frente do seu próprio e significa aprender sobre as próprias forças que nunca se soube ter e lidar com os próprios medos que nunca se soube existirem. Resulta em mudanças na vida profissional, social e pessoal, numa transição maravilhosa mas dolorosa, recompensadora mas esgotante, que por vezes faz questionar a própria sanidade mental. Capturar a essência da maternidade em cinema é uma tarefa desafiante devido à sua complexidade, e Nightbitch, de Marielle Heller, mergulha de cabeça nesse desafio, apresentando uma abordagem diferente e mais aguda.

Adaptado do romance de terror de 2021, de Rachel Yoder, com o mesmo nome, este terror cómico acompanha a protagonista, apenas conhecida como “Mother” (Amy Adams), e a sua vida rotineira como uma dona de casa a cuidar do seu filho de dois anos (Arleigh e Emmett Snowden), enquanto o marido, “Husband” (Scoot McNairy), trabalha e ajuda pouco a cuidar da criança. Isolada, exausta e frustrada com o seu papel como mãe e por ter deixado a sua carreira como artista para trás, a protagonista, lentamente, começa a abraçar o seu poder animalesco fundado na maternidade, enquanto se sente cada vez mais desconectada da sua humanidade e certa, através de sinais bizarros no seu corpo, de que se pode estar a tornar num cão.

De relance e com base na sinopse, Nightbitch parece ser uma metáfora muito clara contra a maternidade. Contudo, é na verdade um filme que a celebra, em todas as suas contradições e complexidades primitivas e selvagens, que retrata como sentimentos diferentes causados por esta transição podem coexistir, ainda que se contrastem entre si. Por um lado, existe uma representação lindíssima do amor profundo da mãe pelo seu filho que brilha através de cada cena, desde as suas corridas e brincadeiras no parque até aos “I love you’s” mandados ao ar. Por outro, a mãe parece ressentir a nova responsabilidade que tem de cumprir, visto que, para cuidar deste pequeno ser humano praticamente sozinha, desistiu da sua carreira e passatempo favorito, a arte e a pintura, reduzindo-se apenas ao papel de mãe e às expectativas sociais que se espera da figura feminina e materna, deixando de ser a sua própria pessoa individual. Adams narra, assim, a sua transformação, alternando entre omnisciência e dúvida. Por vezes, expõe as ironias cósmicas de ser uma mulher com sonhos que deixou de lado para ter um filho, e por vezes contempla se é uma mãe terrível por se preocupar com tal coisa sequer.

Scoot McNairy traz uma atuação relativamente sólida assim como o restante elenco, contudo Amy Adams destaca-se nitidamente. A transparência emocional que a atriz carrega faz com que as suas personagens pareçam mais vulneráveis, o que torna Nightbitch muitíssimo melhor, ao capturar exatamente as emoções intensas e o conflito existencial que podem surgir com a maternidade, bem como a dualidade presente entre o amor e a frustração. Em simultâneo, encaixa-se perfeitamente nas partes cómicas do filme, oferecendo um comedic relief quando necessário. Adams consegue interpretar a gentileza e o carinho de uma mãe, assim como a psicose surreal que a sua personagem sofre, na sua forma de cão, como uma criatura animalesca irracional que quer ser livre e viver sem consequências e responsabilidades, experienciando o mundo de forma visceral.

Na teoria, a metáfora por detrás de uma mãe se transformar num cão é interessante, na medida em que pode explanar, de um modo extremo, as mudanças corporais que se enfrenta pós parto, ou a perspetiva visceral do parto em si, ou uma mulher simplesmente a revoltar-se das pressões sociais e a abraçar o seu lado mais bestial. Todavia, um dos principais problemas de Nightbitch é o facto de ter uma boa premissa relativamente a este aspeto canino, que na verdade deve ao livro de Rachel Yoder, mas não se esmerar na execução. Marielle Heller não se compromete a levar o filme para um território ainda mais estranho, como promete a ideia inicial, e acaba por ficar numa zona de conforto, jogando bastante pelo seguro. Podia ser uma experiência mais extrema, esquisita e desconfortável, aliada aos aspetos de body horror que foram levemente introduzidos, e debruçando-se na sátira absurda da história, de forma a passar a mensagem para a audiência de maneira mais crua. A transformação gradual da mãe deveria dar ao filme uma sensação de movimento, mas, por ser mantida como algo mais retido, sente-se algum desapontamento.

Outro aspeto um pouco decepcionante é o facto da mãe se começar a relacionar com outras mães que supostamente vão ganhando a sua importância na história. Apesar de ser algo intrigante para o enredo, nunca se vê muito destas personagens, pelo que a evolução da relação da protagonista com elas avança muito rapidamente. Parece que servem mais como um adereço para manter a história a desenvolver-se mas que acabam por não ter grande significância por si só; se fossem removidas não faria grande diferença.

Assim, Nightbitch é uma exploração estranha e cómica, com uma dose de estranheza insuficiente e um humor razoável e mediano, da maternidade e das expectativas sociais que a acompanham. Deste modo, o final do filme acaba por ser clean demais e era de esperar algo mais catártico e intenso. O seu forte reside, sem sombra de dúvidas, na atuação impecável de Amy Adams e na representação honesta e real do que é ser mãe, mulher e de como um casamento, por vezes, funciona, oferecendo comentários e cenas pertinentes sobre o tema.

3/5
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