Chega-nos, por fim, a adaptação que garantiu ao romancista Colson Whitehead (The Underground Railroad e Harlem Shuffle) o Pulitzer de Ficção: Nickel Boys narra a vida de Elwood (Ethan Herisse), um jovem que vive na Florida com a sua avó Hattie (Aunjanue Ellis-Taylor), após os pais terem partido para a Califórnia em busca de melhores oportunidades.
A história do protagonista é-nos apresentada desde a sua infância, na década de 60, onde Hattie carrega – durante todo o filme – o afeto, esperança, instinto protetor e resiliência que a luta pela igualdade e inspiração de Martin Luther King Jr. – com discursos que integram o filme – inflamavam na sociedade afro-americana. O filme mostra-nos o antes de Elwood, mas também, e particularmente, o após este ser injustamente enviado para uma escola de correção – escola esta que mantinha a segregação que os protestos do movimento dos Direitos Civis lá fora tentavam cessar. Elwood encontra Turner (Brandon Wilson) ao chegar à Academia Nickel e um vínculo é automaticamente criado entre ambos para sobreviver aos horrores que estamos prestes a descobrir.
Num filme filmado na totalidade em perspetiva de primeira pessoa, naquilo que o realizador RaMell Ross chama de “perspetiva senciente”, a forma como assistimos ao mesmo é moldada por uma familiaridade e proximidade das personagens que nos tornam confidentes das mesmas. Especialmente, quando toca na forma como olhamos para a humanidade e nos vemos impotentes no desfecho da mesma. O objetivo de RaMell Ross, num filme tão íntimo, ao trazer-nos o ponto de vista de jovens negros que foram abandonados à sua própria sorte, permite-nos mergulhar num ambiente desconhecido que nos move à medida que a câmara é nossa testemunha.
Um filme que começa singularmente com a perspetiva de Elwood, desenvolve-se para contar também o ponto de vista de Turner e, meticulosamente, articula uma mestria que provoca o espectador a cada cena – seja na “Ice Cream Factory”, sítio onde os alunos eram brutalmente espancados, ou nas cenas surrealistas em que um crocodilo aparece na berma da estrada. Nickel Boys tem uma fotografia fora do comum. Jomo Fray, (All Dirt Roads Taste of Salt (2023)) presenteia-nos com 140 minutos onde cada cena, carregada de uma estética perfeita ao ínfimo detalhe, esconde os horrores que o filme nos conta.
O romance é baseado na história do reformatório de Dozier, encerrado em 2011, onde a crueldade, os trabalhos forçados e os abusos físicos e sexuais levaram a inúmeras mortes causadas pela brutalidade que demarcava a escola. Dezenas de corpos foram encontrados sepultados na mesma, não tendo sido identificados até hoje. E é-nos muito difícil, em duas horas, perceber a diferença entre o documental e o fictício. Um filme que começa voltado para o céu, envolto na ânsia de um futuro risonho e solarengo de um jovem negro, rapidamente se ajusta à perda de liberdade que moldou toda uma comunidade, num lugar que nos acelera a pulsação e corta a respiração a cada escurecer.
Numa narrativa que perde, por vezes, as linhas temporais nas prolepses que faz, Nickel Boys não falha no retrato racista que pauta a sociedade e as instituições, nem na sensibilidade de, utopicamente, derrotar o sistema que alimenta as mesmas. Ver o mundo através do esperançoso e inocente olhar de Elwood é deixarmo-nos entrar na sua realidade pelas músicas ouvidas com a avó ou pelos gritos ouvidos no reformatório, é sairmos da posição de espectador e trabalharmos ao seu lado numa continua angústia.