Nayola (2023)

de Pedro Ginja

“Ninguém…volta da guerra.”

É esse o principal sentimento retirado deste filme orgulhosamente antiguerra. Acompanha 3 gerações de mulheres angolanas e das suas “guerras” em diferentes períodos da história de Angola. Nayola, a mãe, procura pelo marido durante a guerra civil angolana enquanto, décadas mais tarde, com um país em paz vive Yara, a sua filha, em constante luta contra o poder, representado aqui pela polícia e o governo. O mesmo instinto subversivo de rebelião desta vez convertido numa cantora rap, que debita as rimas contra a opressão do povo. A completar o trio surge a avó Lelena, um limbo entre dois tempos diferentes. Baseado na peça de teatro A Caixa Preta, escrita por José Eduardo Agualusa e Mia Couto aos quais se juntou Virgílio Almeida para escrever o argumento do filme, esta foi uma longa viagem para José Miguel Ribeiro, o realizador, que trabalhou durante 7 anos e em 4 países diferentes para nos trazer, ao grande ecrã, esta magnífica obra.

Desde os primeiros segundo sabemos que estamos em boas mãos. As cores vibrantes, o traço impressionista na animação, relembrando paisagens de Matisse, mas substituindo-as pelo interior angolano devastado pela guerra. A beleza existe mas nunca no sentido de glorificar a guerra. Esta surge sempre suja, desfocada, na sombra ou monocromática. Não estamos em território Pixar ou Ghibli, em termos de fluidez visual, mas a coragem de variar as perspectivas da animação, as diferenças visíveis no estilo das personagens principais (Bem patente no pictorialismo associada a cada uma – Avó, mãe e filha) e as constantes mudanças na palete de cores reforçam o argumento e carregam a narrativa de simbolismos. 

Nestes simbolismos encontramos uma forte influência africana, como seria de esperar, do passado ao presente, revelando uma aprofundada investigação da arte africana com referências à arte rupestre mas sem esquecer os novos artistas e correntes. Vemos claramente essa alternância durante o desenrolar da história o que mantém um interesse elevado e um deslumbramento difícil de igualar com outros filmes de animação recentes mais comerciais. As esculturas e as máscaras, estas últimas com um maior destaque na narrativa, adquirem um imenso poder metafórico e relembram ao ocidente a sua influência em toda a arte mundial como por exemplo no cubismo de Picasso ou na escultura de Modigliani. Mas não se limita à pintura ou escultura. A música, também, adquire um papel principal na narrativa actuando num universo temporal alargado com o passado, representado por Bonga, e no presente temos Medusa, rapper angolana. Partilham, entre eles, as letras de luta/resistência contra a opressão do povo, no caso de Bonga contra a opressão do regime fascista português, antes da independência e em que necessitou de gravar o álbum no exílio na Holanda, e no caso de Medusa a luta contra a injustiça social no país, que defende com unhas e dentes nas suas letras, também ela constantemente perseguida pela polícia. 

Há essa constante referência que a luta não terminou, continua no presente e projecta-se para um futuro sem fim à vista e por isso mesmo a história de Yara parece ficar num limbo sem resolução. Medusa, com nome próprio Feliciana Délcia Guia, dá a voz a Yara no filme, em representação da geração angolana do presente, e encabeça o elenco em representação da arte angolana com Elisângela Rita (poetisa) no papel de Nayola. Para um primeiro trabalho na área ambas conseguem superar e retratar com emoção as suas personagens. Mas é no argumento que o filme transcende para um plano mais elevado com as palavras sábias, certeiras e sempre actuais de Eduardo Agualusa, Mia Couto e Virgílio Almeida. A opção por contar a história do ponto de vista feminino de três gerações tão distintas destaca-se. As mulheres sempre foram consideradas, injustamente, como espectadoras da guerra levada a cabo por homens mas este filme revela exatamente o contrário. Finalmente têm voz para mostrar as mágoas, ansiedades e os traumas de uma guerra dos quais ninguém volta, seja homem ou mulher.

José Miguel Ribeiro, na sua primeira longa-metragem de animação, cria magia e arte pura nesta história de 3 mulheres em constante guerra consigo e pelo seu país. Retrata o passado traumático, mostra o presente injusto e deixa pistas para um futuro incerto mas em aberto para a mudança. Se ela chegará não sabemos mas a esperança é a última a morrer. No final do filme, todos ficamos, um pouco, em Nayola. Imprescindível.

4.5/5
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