Nação Valente (2023)

de Pedro Ginja

Carlos Conceição “aterra”, sem grandes explicações, em Angola no ano de 1974. Já “cheirava” a 25 de Abril em Portugal mas em terras angolanas ainda era a pátria da ditadura que falava mais alto. Em pleno interior angolano a religião, na pele de uma freira, espalha outra das vertentes da pirâmide criada por Salazar, “Deus, Pátria e Família”, a evangelizar as tribos nativas, estas longe da guerra e apenas a viver a sua vida. Mas também a estes lugares chegou a revolução, com as guerrilhas de libertação angolana a procurar os interesses dos “brancos” após longos séculos de opressão e domínio. Muitas vezes se pergunta, durante o filme, que notícias chegam da metrópole mas as respostas são vagas e sempre a esconder o verdadeiro sentimento da população de Portugal.

Em paralelo, um coronel (Gustavo Sumpta) treina uma pequena unidade do exército, de aparentes mancebos, para uma guerra que pode chegar às suas portas a qualquer momento. Há uma “pressa” no ar, uma ameaça que se pode materializar a qualquer segundo e é com esse medo que a chefia infecta um grupo de jovens impressionáveis. A desinformação é o modo de transmissão das notícias, como era apanágio da ditadura. Fechados numa redoma de muros altos, os jovens não têm outra hipótese senão cumprir o seu dever para poderem regressar a casa. Se ainda será a sua casa, no regresso, é a grande questão que Nação Valente pergunta.

O sentimento dominante em toda a narrativa é de estranheza. Não há como evitar esse sentimento desde os primeiros momentos do filme. Algo não bate certo no que sabemos sobre a vida militar e dos tempos pré-25 de Abril, em que a aura de decadência face ao regime ditatorial é cada vez maior. Carlos Conceição usa esse conhecimento contra o espectador e pontua a narrativa com pormenores inusitados longe desse universo temporal. O objectivo é claro, trazer a discussão para o presente de um assunto que se quer no passado, longe, onde não nos pode chegar e interpelar. Outra discussão na mesa é a comparação com o fascismo actual fruto de uma constante insatisfação da população e de uma cada vez mais prevalente mensagem de que “Antes é que era bom”, bem longe da realidade mas que parece contagiar cada vez mais gente, em crescente desespero. Consegue-o não com uma lição de história mas com uma torrente de analogias, metáforas e pequenas pistas, que deixa ao espectador e que parecem recompensar quem está atento ao desenrolar da narrativa. O uso inteligente de uma fusão de géneros, do terror ao drama, com uma passagem pontual pela comédia, consegue modernizar e transmitir a uma nova geração de espectadores o clima desses tempos por um prisma diferente. É, também, orgulhosamente antiguerra evitando heroísmos, mostrando o seu lado sujo e as consequências para a vida que deixa a quem por ela passa.

Nas personagens, o filme opta por as manter no anonimato designando-as pelo seu posto militar com a excepção de Zé (João Arrais) e de Apolónia, interpretada por Anabela Moreira, que acaba por ser a mudança que este grupo de homens evitava confrontar. João Arrais é a inocência em pessoa, um miúdo “chamado” à guerra cedo demais quando ainda pouco sabe da vida. Sempre com o realizador, desde Bad Bunny (2017), é ele o compasso moral da história e carrega no seu rosto a força de uma “geração à rasca”. O coronel de Gustavo Sumpta é um homem cruel que julga fazer o seu dever, enquanto um pai substituto destes miúdos, mas é no final muito mais que isso quando Carlos Conceição vira o filme do avesso e o mostra pelo que realmente é. A sua fisicalidade e a ameaça constante, no olhar, carregam toda a tensão da história. O argumento relembra Shyamalan, não por se encostar ao twist, mas pela originalidade e o constante desafiar das nossas expectativas. Não é por acaso que em 5 curtas e nas suas 3 longas-metragens, o realizador salta entre os seus diversos interesses sejam as referências religiosas, o continente africano, relações extremas humanas e mitos urbanos mas nunca parece repetir o mesmo filme. Nem sempre acerta em cheio mas nunca deixa de tentar algo diferente o que no mundo do cinema actual, cada vez mais repetitivo, é fruto de uma grande coragem.

Carlos Conceição confirma-se como uma nova voz do cinema nacional, longe do padrão habitual cinematográfico português, e trilha um caminho onde equilibra o estranho e o apelo comercial com confiança e certeza nas escolhas feitas. Fico à espera, ansioso, para ver o que saí a seguir da mente deste realizador.

3.5/5
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1 comentário

Gervásio 28 de Abril, 2023 - 15:12

Mais um exemplo do por que não vale a pena ler críticas!

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