Mothering Sunday (2021) é uma celebração nas ilhas britânicas, no quarto domingo de quaresma, que existe desde o século XVI. Como muitas destas tradições, tem uma origem religiosa, servindo como um dia de agradecer e honrar a Virgem Maria, visitar a Igreja da terra natal e reunir a família. Era particularmente usado por criadas/mordomos (muito em voga até meados do séc. XX) como oportunidade para um dia de férias e assim poder visitar as suas famílias e ver as suas mães.
A relação desta celebração com este filme não é assim tão directa mas está nas entrelinhas. Adaptado de um romance de Graham Swift, Mothering Sunday conta a história de Jane Fairchild (Odessa Young), uma criada a trabalhar para a família Niven, pós 1ª Guerra Mundial, com o sonho de encontrar algo mais na vida. Uma relação com um homem fora do seu círculo social – Paul Sheringham (Josh O´Connor), prestes a casar com outra, é a inspiração para um novo futuro, como escritora. Este momento é o seu “Era uma vez…” e o motor para lutar pelos seus objectivos.
O filme cria uma narrativa a três tempos, ou melhor, três estágios da vida de uma escritora. O “início” hesitante e cheio de dúvidas do valor como escritor; o “meio” em que as dúvidas esbatem-se e se escreve a “obra-prima” e o “final” em que a consagração é total e a paz é alcançada. A própria Jane refere existirem três momentos que a fizeram tornar-se escritora – o 1º é ter nascido, o 2º quando lhe ofereceram a primeira máquina de escrever e o 3º este dia, 30 de Março de 1924 – o Mothering Sunday. Por ser órfã, Jane não tem ninguém para visitar e acaba por fazer a “visita familiar” a Paul na casa onde este vive. E é aqui que estão os momentos mais belos da história, a intimidade sem pudores, a utilização imaculada da luz natural e os flares de sol a criar lindos efeitos de difracção nos corpos nus, os diálogos de quem se revela totalmente mas evita enfrentar a realidade, a aura de tristeza e de inevitabilidade de um amor condenado à partida, patente em cada frase, palavra, olhar ou suspiro de prazer. Bem longe do habitual filme de época inglês e bem mais perto de um filme de autor francês, tal é a naturalidade com que revela a nudez sem cair na vulgaridade. Esta sensação de perfeição é perdida com o saltitar para Jane e Donald (Sope Dirisu), cortando a intensidade e perdendo o momento. Esta relação com Donald não tem a intensidade da de Paul mas ganha em cumplicidade, compatibilidade e na maturidade evidenciada só possível com a experiência de quem amou e perdeu. E, novamente, saltita para um futuro ainda mais distante em que Jane (agora interpretada pela luminosa Glenda Jackson, de regresso após longa ausência do grande ecrã) recorda esse domingo em que a sua vida mudou e a inspirou a outros voos. Há valor em todas estas histórias mas estas constantes viagens no tempo retiram foco e dispersam a nossa atenção, não deixando tempo para sentir e nos tocar pela história. Além disto, temos ainda os Nivens – e os Sheringhams -, dilacerados pela dor da perda e, como toda a classe alta britânica, reprimidos pela educação austera de inúmeras gerações. Apenas espaço para uma cena de nota em que Clarrie Niven (Olivia Colman) “explode” como só ela sabe. E há ainda Emma (Emma D’Arcy), a noiva escolhida mas não desejada, sem tempo para formar uma personagem tal como a maior parte do elenco.
Odessa Young é a clara excepção ao mostrar o despertar de uma talentosa escritora e grande mulher, muito para além do seu tempo. Não diria que seja genial mas cumpre na transformação de uma inocente ingénua para uma mulher determinada em busca do sonho de uma vida. Josh O’Connor, sempre com a tristeza no olhar, mesmo quando sorri, e preso a uma vida escolhida para ele, consegue construir a personagem nos pequenos detalhes, nos olhares e naquela cena genial partilhada com Odessa, brilhantemente escrito por Alice Birch (Argumentista de Normal People (2020)) e com uma fotografia luminosa e surpreendente de Jamie Ramsay.
O “Era uma vez…” de Jane Fairchild neste Mothering Sunday, repetido inúmeras vezes pela própria, não é o que queremos mas é o possível na adaptação de um livro que se centra num dia específico, acabando por se perder nas entrelinhas quando deambula por outros tempos e outras paragens. A realizadora Eva Husson consegue uma cena genial e alguns bons momentos, quando traduz a “luz de Março” da novela de Swift para o grande ecrã, mas infelizmente não consegue mostrar a dimensão da tragédia, e ao caminho percorrido por Jane falta o gravitas para justificar o seu talento no espectador. Fica apenas aquela solarenga tarde de Março e isso é suficiente.
Este texto foi corrigido para o antigo acordo ortográfico.
1 comentário
Alta review. De luxo. Muito, muito, mas mesmo muito bom!!