“I need you to trust me, one last time.”
Confiança. É o conceito principal que move esta saga e a carreira de Tom Cruise, a única estrela de cinema disposta a morrer pela sua arte – um homem (aparentemente) imortal, que partilha o objectivo recorrente do seu protagonista: “for those we hold close, and for those we never met”. Independentemente da pessoa em frente ao ecrã, Tom Cruise entrega corpo (literalmente) e alma (alegadamente) pelo seu entretenimento. Todavia, o que é a morte para quem encara o cinema como o Céu? Perante arrojados desafios, mesmo enfrentando uma implosão cinemática que consome tudo e todos no seu caminho, o actor recorda que o seu pedido de confiança é uma mensagem impossível de ser autodestruída.
Mission: Impossible – The Final Reckoning é a continuação de Dead Reckoning (2023) e o suposto capítulo final desta franchise; todas as missões, todas as escolhas trouxeram as personagens até esta guerra pelo destino do nosso planeta. A Inteligência Artificial senciente, denominada de Entidade, está actualmente a vencer a batalha, propagando mentiras como verdades, transformando amigos em inimigos, e criando narrativas falsas para atingir a sua derradeira vontade: a destruição da humanidade. Quem diz que estes filmes não são realistas? O seu seguinte passo envolve conquistar o controlo de mísseis nucleares para erradicar a nossa existência e recomeçar um novo mundo, um mundo reinado pela sua visão. A única esperança reside na equipa da IMF, liderada por Ethan Hunt (Tom Cruise), determinada a entregar as suas vidas pela sobrevivência dos seus próximos e de desconhecidos.
Lamentavelmente, a brevidade deste resumo não foi com a intenção de evitar spoilers. A realidade é que no seu primeiro acto, a nossa confiança nesta missão sofre imediatamente um disparo: o excessivo detalhamento da sua história para conectar todos os capítulos, criar uma mitologia e evocar uma sensação de conclusão natural para a saga inteira. Claramente, Christopher McQuarrie (realizador e co-argumentista) e Tom Cruise pretendem produzir uma experiência cinemática apta para todo o seu público, incluindo as pessoas que desconhecem os filmes anteriores. Ainda assim, enquanto a duração de Dead Reckoning foi similar a uma brisa, em Final Reckoning sentimos o peso do seu tempo, com flashbacks maioritariamente desnecessários e diálogos de exposição que acertam no alvo da exaustão.
Durante esta fase inicial, avistamos um sangramento destacado pela sua edição que procura compensar os seus depósitos de informação com incessantes cortes entre planos próximos individuais para planos próximos individuais, empregando a montagem como um shot de adrenalina. Existe energia mas é simplesmente cansativo, prejudicando o seu ritmo sentimental. Apesar de compreender esta decisão criativa, senti saudades do toque visualmente teatral de Brian De Palma, que conseguia esventrar o núcleo de uma cena com uma pujante coreografia dramática entre actores, espaço e câmara. É uma incontornável consequência da sua ambição. Afinal, Final Reckoning está a explorar todas as escolhas e acções dos capítulos passados e a criar uma continuidade narrativa e emocional, minimamente estável, entre diversas longas-metragens com cineastas, sinopses e finalidades diferentes.
Quando o argumento finalmente assenta na sua sinopse, o filme estanca a sua ferida e a história recupera o nosso entusiasmo com vigor. Repentinamente, no segundo acto, experienciamos uma fusão espectacular entre emoção e técnica, com diálogos hipnotizantes e cenas de acção brilhantes, incluindo uma sequência debaixo de água que nos corta o oxigénio – um segmento incrivelmente assustador, semelhante a uma obra de horror, que usufrui do seu silêncio para provocar ansiedade e claustrofobia, até suscita lágrimas de nervos –, e o intenso confronto climático (uma das melhores stunts da sétima arte) que comprova simultaneamente a imortalidade do seu actor como a sua insanidade, e que transporta a audiência até à infância, quando o cinema era uma magia deslumbrante, questionando inocentemente: como fizeram isto? McQuarrie e Cruise, sendo influenciados primordialmente pelos clássicos, simplesmente fizeram. Existe retribuição na nossa confiança. Nos instantes em que Ethan, Benji (Simon Pegg) ou Grace (Hayley Atwell) executam feitos absurdos, nas suas missões, que requerem inúmeros actos de Deus, surpreendentemente nunca contrariamos a sua veracidade, é tudo completamente credível. Neste sentido, em Mission: Impossible – The Final Reckoning experienciamos a nossa juventude, quando a imaginação era a nossa realidade e quando o cinema era um milagre.
É verdade que este é o fechar de uma saga com demasiada bagagem para um único avião. Contudo, quem quer saber das malas quando estamos perante a maior estrela de cinema a voar? Este é o seu filme, uma despedida a Ethan Hunt e um Adeus de Tom Cruise à saga que cresceu consigo, que evoluiu conforme a sua carreira; à primeira franchise que produziu. No caminho, perdemos a relevância de algumas personagens secundárias, como Pom Klementieff – um destaque do capítulo anterior –, agora reduzida a uma arma para proteger a equipa, e, apesar da sua proeminência narrativa, a química ardente e o ambiente cartoonish, reminiscente de comédias screwball, entre Cruise e Atwell. Ansiamos por menos explicações e por mais interações caóticas e divertidas deste elenco, por momentos para brilharem como estrelas, mas somos recordados que esta é a conclusão das suas histórias, que a sua sobrevivência é a prioridade nesta guerra contra o novo Deus, e que Ethan Hunt permanece a razão para estarmos sequer sentados frente ao ecrã.
Luther (Ving Rhames) menciona que nada está escrito, que as nossas vidas são a soma das nossas escolhas. É a mensagem esperançosa de uma obra que encara a sua saga com esta perspectiva. Tudo conduziu até este desfecho. Neste filme, a soma das suas decisões prevalecem contra os seus problemas individuais, seja a sua banda sonora bombástica mas apenas adequada; a sua excelente direção de fotografia que captura a acção com planos abertos e uma iluminação natural, e que manifesta a privacidade destes protagonistas através de planos fechados, dominados por sombras; o seu potente design sonoro imersivo, ou as fantásticas atuações deste elenco, para o melhor e para o pior, Mission: Impossible é a soma das suas escolhas. Nesta implosão, somos incapazes de desviar do seu impacto ou sequer parar de admirar a sua beleza ardente.
Após numerosas controvérsias, dramas de tablóides, mesmo depois de The Mummy (2017), continuamos a regressar porque sabemos que podemos confiar em Tom Cruise, nas suas aptidões, no seu esforço, e no seu compromisso com o cinema e com o público. A realidade é que Tom Cruise está consciente que precisa de nós, tanto quanto o cinema precisa de Tom Cruise. No entanto, não existe cinismo neste conhecimento, nem raiva por ser, por vezes, abandonado pelos espectadores. Pelo contrário, existe apenas paixão e dedicação. Precisamente por este motivo, regressamos. Quando Ethan Hunt, aliás, Tom Cruise pergunta se aceitamos a sua missão, sabemos automaticamente a resposta.
Paralelamente às suas personagens, que combatem contra uma ameaça com a capacidade de apagar as suas vidas e o mundo, o próprio filme está ciente do seu principal inimigo algorítmico; que a sua existência depende da devoção de um público afectado por uma entidade; e que existe uma forte possibilidade de não conseguir fugir da sua ambição explosiva, face à acessibilidade do digital e da inteligência artificial. Os danos são notáveis, as cicatrizes pronunciadas e o sangue derrama pela sua pele. Contudo, permanece vivo. Essa é a sua mestria, mesmo quando o sucesso depende do timing de um piscar de olhos, mesmo perante o estado frágil actual do cinema, recusa-se a morrer. Desprovido de aflição e com o seu sorriso charmoso, permanece vivo. É impossível não acreditar que o destino de Tom Cruise é salvar o cinema. Uma missão que ele escolhe aceitar sempre.