Mickey 17 (2025)

de Rafael Félix

Alguns anos de atrasos de produção. Outros anos em conflito com a produtora. Iniciado na ressaca do êxito galardoado de Parasite (2019) e pronto desde 2023, Bong Joon-ho consegue finalmente trazer a adaptação do livro de ficção científica de Edward Ashton, Mickey7, para o grande ecrã. Finalmente é palavra-chave.

Mickey Barnes (Robert Pattinson) vê-se com o pior emprego do mundo… ser dispensável. O seu trabalho é, basicamente, morrer. É usado para testar a atmosfera tóxica do novo planeta que a Terra pretende colonizar, para experiências médicas, alimentares ou até piadas estupidas. Morrer. Morrer. E morrer outra vez. Vinte horas depois, uma nova versão de Mickey é impressa, um novo corpo com a mesma mente e a mesma memória daquela que a anterior possuía antes de kaput. Acidentalmente, quando Toma (Steven Yeun) deixa a décima sétima iteração de Mickey para morrer, a 18ª versão de Mickey é impressa, menos passiva e cobarde e mais violenta e psicopática que a anterior. O problema? A versão 17 está viva e quer o seu lugar de volta.

A batalha do realizador sul-coreano com a Warner Brothers prendia-se com o final cut. Bong Joon-ho não dava mão deste e a produtora, tanto quanto se sabe, não está particularmente feliz com o resultado final. Porém, ao que parece, Bong acabou por conseguir o que queria: manter a integridade da sua visão para Mickey 17, com todas as suas maravilhas e defeitos.

Olhando para Mickey 17 no panorama da filmografia de Bong Joon-ho, começa-se a desenhar um padrão interessante: os temas são, normalmente, comuns entre os filmes, mas os de língua inglesa são aqueles que têm utilizado elementos mais conceptuais e do reino da ficção científica para explorar as formas insaciáveis do capitalismo, conflitos de classe e exploração. Por um lado, pode ser uma questão meramente orçamental, por outro, parece cada vez mais que as irritações para com a paisagem apocalíptica trazida pela selvajaria americana soam melhor quando alimentadas pelo seu dinheiro gerado por esta selvajaria

A personagem de Mark Ruffalo é praticamente um arquétipo “Trumpiano”, um senador que perdeu múltiplas vezes corridas eleitorais e que agora se dirige para outro planeta para o colonizar apenas com “humanos puros” em conjunto com os seus seguidores de bonés vermelhos na cabeça; é também o responsável para que estes “dispensáveis” como Mickey, possam ser usados desumanamente para morrer e morrer apenas para ganhos comerciais e aumentos de produtividade. As críticas são claras e Mickey 17 nunca será acusado de ser subtil na sua abordagem, seja ela sobre capitalismo, o desprezo pela vida humana ou a arrogância colonialista mascarada de conquista espacial. Estas aparecem envolvidas no habitual humor aguçado que tem marcado os filmes de Bong Joon-ho e aquilo que podia parecer uma espécie de pregar, torna-se uma sátira mordaz passado em frente a um background interplanetário por um realizador que, apesar das suas mágoas com a raça humana, continua a gostar e acreditar muito nos seus integrantes.

Todavia, este background leva o seu tempo, muito voice-over e alguma paciência para ser estabelecido, o que é um pouco o pronuncio do resto do filme. Com todas as suas propostas ambiciosas e questões ético-filosóficas sobre o que nos faz mesmo pessoas, quem e o que somos, misturados com os elementos de ficção científica e imperialistas, Mickey 17 sente-se algo atabalhoado. São muitas as ideias e os momentos individuais que funcionam por si, mas é um filme que carece de coesão, com demasiadas linhas narrativas para dirigir em simultâneo e que na hora em que chegam ao seu destino final, vêm com, ou falta de desenvolvimento ou uma sensação de total abandono (bom exemplo disso é a personagem de Steven Yeun, que aparece e desaparece múltiplas vezes de Mickey 17). Há excesso de peças em movimento, que por bem que estejam filmadas e compostas, como estão habitualmente nos filmes do sul-coreano, elevadas ao épico pela música operática de Jung Jae-il, a peça total deixa a desejar.

Talvez seja um momento injusto na carreira de Bong Joon-ho. Independentemente do que apresentasse, seria sempre colocado ao standard que Parasite estabeleceu. É uma obra gigantesca de sci-fi, que traz alguns dos melhores elementos de Okja (2017) e Snowpiercer (2015), marcada por uma absolutamente extraordinária performance de Robert Pattinson neste duplo papel que ajuda a provar, novamente, que é um dos melhores, e passada num mundo cuidadosamente construído em termos visuais e sonoros. Infelizmente, parece constantemente mostrar que podia ser melhor do que o que é.

Continua a ser uma belíssima peça de entretenimento e de reflexão realizado por um dos realizadores mais importantes do cinema moderno, mas falta-lhe o ímpeto que já lhe vimos noutras paragens, o brio e precisão de outros momentos mais gloriosos. Mickey 17 podia ser mais, mas continua a ser de Bong Joon-ho.

3.5/5
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