A Whiter Shade of Pale, da banda britânica Procol Harum, surge inúmeras vezes a tocar no fundo ou em primeiro plano durante a maior parte de Memory. Dizem por aí que esta música fala de uma relação a desvanecer durante uma noite de excessos e onde não parece haver um final feliz. Esmiuçando ou pegando em frases soltas, poderíamos retirar outros significados ou pormenores do que levou a esse desfecho infeliz, quase sempre dependentes da nossa própria história de vida. Essas memórias vivem de graça na nossa mente e contaminam como nos relacionamos com os outros. Não há como escapar do passado e do que nos assombra nos labirintos recônditos da nossa mente e Memory explora esses demónios que nos prendem ao nosso verdadeiro “Eu”.
Sylvia (Jessica Chastain) e Saul (Peter Sarsgaard) trocam olhares numa festa de reencontro na escola onde estudaram num passado distante. Algo parece atrair o olhar de Saul para Sylvia, mas o fascínio não é recíproco. Após abandonar a festa, Sylvia apercebe-se que Saul a segue e a tensão da situação cresce à medida que se aproxima da porta de entrada da sua casa. Na segurança do seu interior, continua a ver Saul a olhar para a sua janela. Chegada a manhã percebe que Saul dormiu à porta de sua casa e apresenta um olhar vazio e perdido. Um cenário invulgar escrito por Michel Franco, no seu mais recente projecto, e que vai mudar a vida dos seus protagonistas “presos” na sua mente, de maneiras bem distintas.
Michel Franco, no seu segundo filme em língua inglesa, continua a explorar os meandros das relações humanas e das implicações que as nossas acções e reacções têm nos que nos rodeiam e na sociedade em geral. Como sempre acontece nos seus projectos, além da realização é também responsável pelo argumento que se foca em temas complexos e pesados. Ao contrário do que o trailer aparenta, este não é um romance em que o humor negro é usado como forma de aliviar os traumas dos seus protagonistas. Também não é bem um drama pesado sobre os efeitos de traumas passados nas relações que temos no presente. Vive numa espécie de limbo entre estes dois mundos e nunca assenta âncora de forma segura em nenhum. É simplista no modo como muitas vezes relativiza o trauma, desafiando mesmo a lógica, na maneira como os seus protagonistas reagem a situações outrora paralisantes e, que de um momento para o outro, são ultrapassados sem hesitações. Noutros momentos complica quando o espectador já está investido no romance, e quer ver o amor triunfar sobre todas as adversidades, com as mudanças inexplicáveis de personalidade de alguns actores secundários ou na introdução de twists para intensificar o factor choque das revelações traumáticas de Sylvia e Saul.
Os dois protagonistas, apesar de algumas incongruências do argumento, são personagens com as quais é fácil nos conectarmos, em parte graças aos brilhantes intérpretes que lhe dão voz e corpo, Jessica Chastain e Peter Sarsgaard, e à química enternecedora que se cria entre ambos. É fácil torcer por Sylvia e Saul mesmo quando todos parecem estar contra eles, pelas nuances comportamentais de que revestem as suas personas e o talento nato dos dois. No lado dos secundários, destaca-se Merritt Wever, sempre relevante e ganhando destaque no final com uma cena de confronto familiar, onde privilegia o desconforto do silêncio e a culpa contida, em vez de um descontrolo emocional como a solução ideal para brilhar.
A constante repetição da música A Whiter Shade of Pale poderia provocar cansaço, mas a sua natureza familiar (com influências directas de Bach) e, ao mesmo tempo, invulgar em termos estruturais e musicais, permite a criação de um sentimento nostálgico essencial para ligar as pontas soltas do argumento. Passado, presente e futuro unidos através de um uso sublime do órgão Hammond, um favorito pessoal nos instrumentos musicais.
Complexo na temática mas simplista na execução, Memory é uma enternecedora história de amor entre duas almas em busca de paz com a memória do passado. Poderá não ser uma das memórias mais felizes da carreira do realizador, mas o empenho e o talento do seu duo protagonista é razão suficiente para esquecer as fragilidades de um argumento desequilibrado.